O Sêder de Shmerl
  Por Tuvia Bolton
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Professor, músico e popular contador de histórias, Rabi Tuvia Bolton é co-diretor e palestrante veterano na Yeshivá Ohr Temimim em Kfar Chabad, Israel.Passava bastante da meia-noite na primeira noite de Pêssach, e o grande mestre chassídico Rabi Levi Yitschac de Berdichev tinha terminado o relato do Sêder de Pêssach na presença dos seus discípulos. Eles tinham recitado a Hagadá, relatado a história do Êxodo e discutido o significado profundo implícito em cada uma das passagens; eles tomaram quatro copos de vinho, mergulharam o carpás na água salgada e as ervas amargas no charosset, comeram a matsá, o korech e o aficoman, entoaram os salmos de louvor e gratidão – tudo de acordo com o Shulchan Aruch (Código da Lei Judaica) e os princípios esotéricos encontrados nas obras místicas do santo “Ari”.

Os discípulos de Rabi Levi Yitschac tinham participado em muitos sedarim do Rebe no passado, mas este superava todos eles. O Rebe e todos os presentes sentiram-se transportados a um mundo diferente, como se tivessem se elevado acima das suas limitações corpóreas e entrado num mundo de pura Santidade.

De repente a sala se encheu com o som de um ribombar profundo, como trovão, e dentro do trovão uma voz impressionante anunciou: “O Sêder de Levi Yitschac agradou a D’us, mas há um judeu em Berdichev chamado Shmerl, o Alfaiate, cujo Sêder foi ainda mais elevado!”

O Rebe olhou em torno. Era óbvio que somente ele escutara o anúncio celestial.

“Alguém já ouviu falar de um tsadic (justo) chamado Shmerl, o Alfaiate?” perguntou ele aos chassidim. Ninguém tinha ouvido falar.

Após vários minutos de silêncio, um dos chassidim sugeriu: “Há um Shmerl aqui em Berdichev que eu conheço, e há trinta anos ele era alfaiate, mas com certeza não é um tsadic. Na verdade, está muito longe disso. Eles o chamam agora de ‘Shmerl o Shiker’ (bêbado), e mora com a esposa num barraco de madeira perto dos trilhos de trem.”

Mas Rabi Levi Yitschac estava pensando consigo mesmo: “Ah! Este deve ser um dos tsadikim ocultos. E ele mora bem aqui, em Berdichev, embora eu nada saiba a seu respeito.”

Eram duas horas da manhã quando o Rebe chegou à porta do velho barraco de Shmerl. Uma senhora idosa atendeu à sua batida. “Bom Yom Tov!” disse Rabi Levi Yitschac baixinho. “Por favor, desculpe-me pelo adiantado da hora. Seu marido Shmerl está em casa?” Ela respondeu. “Bom Yom Tov. Espere um instante, por favor, Rebe, espere aqui mesmo.”

Ela desapareceu dentro da casa, e pôde se ouvir o som inconfundível de um balde sendo enchido lá dentro. Então um minuto de silêncio e de repente… Splash! Ela atirou o balde de água sobre o marido adormecido.

“Aaahh! Oyyy! Onde estou? Que é isso?” gritou ele, e então ouviu-se a voz da mulher gritando: “Levanta, seu bêbado! O Rebe veio aqui para castigar você! Acorda, seu inútil!”

O pobre Shmerl arrastou-se, pingando água, até a porta. Quando ele viu que era realmente o Rebe ali de pé no meio da noite, ele caiu aos pés de Rabi Levi Yitschac e começou a lamentar-se: “Por favor, Rebe, não me castigue. Não é culpa minha… Eu não sabia… Por favor, tenha piedade…”

O Rebe estava perplexo perante esta cena bizarra. Seria possível que o Sêder deste homem fosse superior ao seu?

Ele inclinou-se, ajudou o pobre Shmerl a levantar-se e disse: “Escute, Shmerl, não vim aqui para puni-lo. Na verdade, nem mesmo sei sobre o que você está falando. Deixe-me entrar, vamos sentar e bater um papo. Quero apenas fazer-lhe uma pergunta. Vá vestir uma camisa seca e conversaremos.”

Minutos depois estavam sentados à pequena mesa de Shmerl. O Rebe contemplou-o bondosamente e disse:” Shmerl, escute, quero que me diga como conduziu o seu Sêder na noite passada. Não se preocupe, não vou puni-lo.”

“Oy!” gemeu Shmerl e começou a lamentar-se novamente. “Meu Sêder! Mas Rebe, eu realmente não sabia… Oyyy!”

Gradualmente, ele começou a acalmar-se e a falar. “Cedinho nesta manhã, isto é, ontem pela manhã, eu estava caminhando pela rua e de repente vi as pessoas correndo pra cá e pra lá. Uma tinha uma vassoura nos ombros, aquela carregava uma caixa, a outra carregava não sei o quê, enfim todos corriam atarefados – exceto eu. Então parei alguém que eu conhecia e perguntei: ‘Por que todos estão correndo? Para onde estão indo?’

“Ele me respondeu: ‘Ora, Shmerl, está tão bêbado que se esqueceu que Pêssach é esta noite? Esta noite é Pêssach! Lembra-se o que é Pêssach?’

“Tentei pensar, mas minha mente não funcionava. Pêssach, Pêssach. Eu… não consigo lembrar. Parece muito importante, porém; lembro-me de alguma coisa sobre matsá… e Egito. ‘Por favor!’ Eu implorei ao homem: ‘Faça-me um favor e me diga do que se trata, pois esqueci.’

“O homem olhou-me de maneira estranha, e respondeu: ‘Escute, Shmerl, hoje à noite você tem de fazer um Sêder. Você sabe, recite a a Hagadá, coma as três matsot, ervas amargas, quatro copos de vinho. Você gostará do vinho, Shmerl’ – disse ele com um sorriso triste.

“’Oito dias!’ gritei. ‘Por quê? Por que não posso beber durante oito dias?’ Eu estava tremendo e comecei a me lembrar vagamente de tudo.

“Porque esta é a lei!’ respondeu ele. ‘Durante oito dias, se você é judeu, nada de chamets (fermento) passa através dos seus lábios. A vodca é chamets. Se você não consegue se segurar por oito dias, então vá para Israel’ – riu-se ele. ‘Ali o chamets é proibido somente por sete dias…’

“Eu fiquei perplexo. Sem vodca durante oito dias! Corri para casa, juntei todo o dinheiro que havia, comprei uma garrafa grande de vodca, servi-me de oito copos, um depois do outro, e bebi todos eles… esperando que aquilo me ajudasse a resistir ao feriado. A próxima lembrança que tenho é que eu estava dormindo em minha cama quando de repente minha mulher jogou um balde de água em cima de mim – você sabe como ela faz – e começou a gritar: ‘Shmerl, seu bêbado! Seu inútil! Todos os judeus do mundo inteiro estão fazendo o Sêder esta noite, e você está deitado aí como um boi bêbado. Levante e faça um Sêder!’

“Então levantei-me cambaleando, vesti algumas roupas secas e sentei-me à mesa lindamente arrumada. As velas estavam acesas, brilhando e fazendo os pratos e talheres reluzirem. Tudo estava limpo e novo. Senti-me diferente, quase sagrado. O vinho e as matsot estavam sobre a mesa, a Hagadá aberta à minha frente. Minha mulher colocara até a travessa do Sêder com todos os itens, como se lembrava de ter feito quando o pai era vivo. Ela própria estava sentada à minha frente, como uma rainha, e estava até sorrindo. Tudo estava tão bonito.

“Mas então – olhei em volta e eu não sabia o que fazer. A vodca ainda estava girando na minha cabeça mas, para ser franco, Rabi, nem mesmo sóbrio eu saberia o que fazer num Sêder.

“Então peguei uma tigela grande e coloquei tudo ali dentro. As três matsot, as ervas amargas, a bandeja de charosset, todos aqueles pequenos itens que minha mulher arrumara na travessa do Sêder, e despejei os quatro copos de vinho por cima de tudo, e misturei bem.

“Então ergui minha tigela do Sêder e comecei a falar com D’us. Assim mesmo, como estou falando com você agora. Comecei a conversar com D’us e disse: ‘D’us, escuta… Eu não Te conheço, mas Tu me conheces. Sabes que depois que meu pai foi morto, eu precisei trabalhar o tempo todo e nunca tive uma chance de aprender, certo? Portanto, não sei como ler este livro, na verdade não sei ler coisa alguma! E também não sei o que tenho de fazer com todo este negócio aqui. Mas uma coisa eu sei… Eu sei que há muito tempo Tu enviaste Moshê para nos tirar do Egito, e estou certo de que Tu enviarás Mashiach para nos livrar de todos os nossos problemas agora!

“E então, de um gole só, engoli aquilo tudo.”

   
 
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