Entrevista realizada com Prof. Yeshayáhu Gafni da Universidade Hebraica de Jerusalém, pesquisador de História do Povo de Israel na época do Segundo Templo.
     
  A força da resistência
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Quando começou a história de Chanucá?

A história de Chanucá começou 169 anos antes de Yehudá, o Macabeu, quando Alexandre, o Grande, conquistou a Terra Santa e grande parte do mundo colonizado, em 332 A.E.C. A conquista de Alexandre introduziu o mundo antigo - inclusive Êrets Yisrael - num contexto cultural e político que antes não existia.

Que mudanças ocorreram no mundo?

O mundo antigo era composto por tribos, civilizações e religiões que não se misturavam umas com as outras. As conquistas dos babilônios e dos persas eram apenas políticas, sem influenciar a cultura e a religião dos conquistados. A chegada de Alexandre provocou uma alteração na base da cultura mundial, trazendo consigo a cultura helenista. Alexandre almejou uma cultura universal. Por exemplo, contam que organizou em Susa (Shushan) uma cerimônia de casamento para dez mil soldados macedônios com dez mil noivas persas. Ele mesmo casou-se com a filha de Dario (Daryávesh), o último rei persa. Seu objetivo era claro - a fusão das culturas, tanto social como étnica. Queria criar unidades socioculturais que constituíssem a base de um império estável.

Esse plano obteve sucesso?

Em muitos aspectos, sim. Após a morte de Alexandre, em 300 A.E.C., o reino foi dividido entre seus três generais, dois dos quais receberam o Império Oriental: Ptolomeu (Talmai) passou a governar o Egito e Seleuco passou a governar Síria, Iraque, Pérsia, Afeganistão, Paquistão e partes da Índia. A Terra de Israel era o ponto de confronto entre os dois governos e passou de um para o outro várias vezes. A maior parte dos primeiros cem anos ficou sob o domínio de Ptolomeu. No ano 200 A.E.C., passou para as mãos de Seleuco, sob cujo governo os judeus vieram a se rebelar 37 anos mais tarde. Porém, a cultura helenista era a dominante em ambos os impérios e continuou a infiltrar-se e a consolidar-se como a cultura única, universal, de todo o mundo.

O que é exatamente a cultura helenista?

Temos que entender a mensagem helenista. Em princípio, era a fusão da cultura grega com a oriental. Porém, na prática, a cultura helenista assimilou dentro de si as culturas orientais e se transformou numa cultura universal. Em Atenas, Alexandria, Ashkelon, Aco, Shushan e Damasco encontravam-se pessoas que falavam o mesmo idioma - o grego - pensavam de maneira semelhante, impregnadas de um contexto cultural comum e serviam aos mesmos ídolos.

Esta foi a primeira vez na História que se desenvolveu uma cultura universal?

De fato, a cultura helenista derrubou as separações tribais, amainou as diferenças entre os povos e cultivou uma cultura geral. Sua influência era tão grande que fez surgir uma cisão entre os gregos (termo geral para os helenistas) e os bárbaros (todo o resto). Quem falava grego, era considerado culto; se não, era considerado bárbaro.

A tolerância da cultura helenista se expressava no fato de não investigar sua origem étnica ou religiosa. Até o

     
 
Em Chanucá, os judeus detiveram o curso natural da História: disseram "não" à onda de helenismo que varria todo o Oriente Médio.
 
     

judeu podia ser um grego perfeito. Um aluno de Aristóteles relatou que, certo dia, o filósofo encontrou um judeu e exclamou: "Esse judeu não é apenas grego em sua língua, mas também em sua alma." Era um mundo aberto, atraente e tolerante. Ninguém lhe perguntaria quem foi seu avô.

Todos os povos do Oriente Médio adotaram o helenismo?

Menos os judeus. Todos os povos do Oriente Médio assimilaram integralmente o helenismo numa única geração. Os tsidonim, por exemplo, fundaram uma cidade grega chamada Marêsha, ao lado de Bet Guvrin, onde encontramos uma tumba com os nomes dos enterrados e um fenômeno interessante: os pais tinham nomes orientais, enquanto os filhos já tinham nomes gregos. Toda a Terra de Israel ficou repleta de "pólis" - cidades gregas. Bet Shean transformou-se em Skitópolis; toda a planície litorânea tornou-se grega.

Do outro lado do Rio Jordão, havia uma série de cidades gregas. Somente um bolsão, formado por Jerusalém e Judá (Yehudá), continuou a ser habitado por um pequeno grupo que não se rendeu à torrente desta cultura estranha.

Havia helenismo?

A helenização se procedeu gradualmente, corroendo, de fato, a não capitulação de Yehudá. Convém observar como foi este processo, usando documentos históricos. No lado ocidental do Rio Jordão vivia um judeu chamado Tuvyá, cunhado do Sumo Sacerdote.

Encontramos um papiro com uma carta que Tuvyá enviou ao Ministro das Finanças do Egito. Iniciava assim: "Se todos seus assuntos vão bem e com você tudo está de acordo, estou feliz; um grande louvor aos deuses." Isto foi escrito pelo cunhado do Sumo Sacerdote! Pode-se até dizer que era o texto inicial padrão de uma carta oficial da época. Porém, um judeu que crê jamais escreveria um texto contrário à sua fé no D'us único. Veremos adiante como uma pequena concessão se transforma numa grande transgressão.

O filho desse Tuvyá, Yossef, tornou-se coletor de impostos de Israel. Numa de suas viagens a Alexandria desejou casar-se com uma dançarina egípcia e pediu a seu irmão que fosse o intermediador do casamento, porém advertiu-o: "Não revele a ninguém." Ou seja, como judeu, sabia que era proibido, pediu que o fato não fosse revelado, mas já transpusera a barreira, a cerca, entre Israel e os povos. Seu irmão, tentando impedir a transgressão, casou-o com sua filha e tiveram um filho, Hircano (Horkenus), que se tornou um dos líderes do partido grego em Jerusalém. Aqui vemos um processo que durou três gerações: iniciou-se com a escrita de um avô e terminou com um neto de nome grego que negou seu judaísmo.

E tudo isso ocorreu sem qualquer coação por parte dos gregos?

A primeira fase foi tranqüila para os judeus. Alexandre preservou a autonomia religiosa, usufruída pelos judeus na Terra de Israel durante os duzentos anos do governo persa. Ptolomeu, o rei grego do Egito, traduziu a Torá ao grego, o que prova que os helenistas sabiam valorizar a Torá. No ano 200 A.E.C., Antíoco III, pai de Antíoco Epifânio (o Malvado), conquistou a Terra de Israel e proclamou que a constituição vigente seria a Lei da Torá. Os judeus ficaram felizes. Aparentemente, poderiam esperar por um relacionamento positivo. Porém, em 30 anos, a situação deteriorou-se por completo.

Por quê?

Aqui a história é principalmente política. Os romanos começaram a se aproximar do Oriente Médio. Quando Antíoco Epifânio subiu ao poder, em 175 A.E.C., seu grande sonho era unir todo o Oriente Médio contra os romanos. A homogeneidade religiosa e cultural já fora alcançada, com exceção de um pequeno grupo, que se encontrava num ponto estratégico e mantinha-se isolado com seus costumes. Este povo o preocupava - um grupo diferente e centralizado que pôs em risco a unicidade governamental. Não era possível saber o que ocorreria lá. Antíoco tentou, numa primeira etapa, erguer um governo em Jerusalém que lhe fosse conveniente.

Governo judaico?

Na prática, o líder do povo judeu era o Sumo Sacerdote. Antíoco depôs o Sumo Sacerdote Chonyo e em seu lugar nomeou Jasão. Isso ainda era tolerável, pois Jasão era irmão de Chonyo. Contudo, Jasão transformou Jerusalém em "pólis". Introduziu instituições gregas e um ginásio no qual jovens competiam despidos em jogos atléticos. Não impôs a cultura grega sobre o povo, mas pregou o entrelaçamento da Torá com a sabedoria grega. Jasão criou um clima de helenismo, que influiu até os sacerdotes do Templo. Conta-se sobre sacerdotes que preferiam assistir aos jogos no ginásio a fazer o serviço sagrado do Templo.

O helenismo começa a alçar vôo?

Os helenistas existiam antes disso, mas na época de Jasão ganharam força. O partido dos helenistas incluía, principalmente, a aristocracia judaica de Jerusalém. Interessante notar que os helenistas concentravam-se essencialmente em Jerusalém, enquanto nas aldeias de Yehudá quase não se ouvia sobre suas atividades. A maioria do povo permaneceu fiel à tradição de seus antepassados. Somente a classe alta adotou a cultura grega, pois esta servia como passaporte social e econômico mundo afora.

Antíoco, num esforço de unificar o mundo oriental contra os romanos, planejou invadir o Egito e anexá-lo a seu império. Necessitava de dinheiro para agilizar seu plano. O homem de confiança de Jasão era um judeu, Menelau, helenista mais extremista que o próprio Jasão. Menelau propôs a Antíoco nomeá-lo Sumo Sacerdote no lugar de Jasão em troca dos tesouros do Bet Hamicdash.

Antíoco demitiu Jasão e empossou Menelau. Tinha um bom motivo. Às vésperas das campanhas militares contra o Egito, precisava assegurar a tranqüilidade em Yehudá e Menelau faria este serviço.

Em 168 A.E.C., Antíoco chegou aos portões de Alexandria. Exatamente nesta época, os romanos derrotaram o Império Macedônio na Grécia e enviaram um cônsul a Antíoco, no Egito, com um "conselho amigável": retornar à Síria. Antíoco tentou ganhar tempo e respondeu ao cônsul: "Pensarei no assunto." O cônsul romano desenhou um círculo no chão em volta dos pés de Antíoco e disse: "Pense aqui, dentro deste círculo." A honra de Antíoco fora rebaixada, mas o medo do poderio de Roma era mais forte. Reuniu seu exército e retornou para casa. Os judeus da Terra de Israel, sabendo de sua retirada, supuseram que foi derrotado na batalha e começaram as desordens.

Qual era o quadro para as desordens?

Havia uma efervescência, uma comoção pela intromissão nos serviços sagrados e pela introdução da cultura grega em Jerusalém. Interessante que também Jasão, o helenizado, que fora afastado por Menelau, fazia parte dos baderneiros. Ele achava que Menelau estava passando dos limites; provavelmente sua humilhação pessoal influenciava seus motivos.

Como reagiram os gregos?

Antíoco reagiu com mão de ferro. Enviou uma guarnição a Jerusalém para oprimir os tumultos. Seu próximo passo foi esmagar a fé judaica, o que evitou durante anos.

O que o levou a fazer isso?

Nas pesquisas, os decretos de Antíoco parecem um enigma. Não agiu assim em outros lugares. É importante lembrar que o mundo helenista não era intolerante. Há que se sustentar que Antíoco entendia - ou seus conselheiros ajudavam-no a entender - que, enquanto os judeus estivessem ligados ao judaísmo, permaneceriam um grupo diferente e isolado, o que ele receava. Também a natureza de seus decretos testemunha que não lhe interessava puramente a conversão dos judeus, i.e., salvar suas almas, por assim dizer. Antíoco via na fé judaica um perigo para seu governo e por isso a oprimiu.

Quais foram seus passos?

Introduziu um culto idólatra no Templo Sagrado; o serviço Divino foi interrompido; a estátua de Zeus foi erigida no Bet Hamicdash e sacrifícios impuros eram oferecidos. A intenção era destruir o culto judaico.

Menelau fugiu para Esparta. O governo anunciou a proibição do cumprimento de determinadas mitsvot. Os oficiais do governo - enviados para fazer vigorar as leis pagãs - impuseram aos habitantes que se curvassem perante os ídolos, comessem porco e participassem dos ritos gregos. Estes decretos foram a centelha que acendeu o fogo da rebelião com todo seu ímpeto.

E Modiin?

Modiin era uma cidade de sacerdotes e era importante ao governo obter sucesso justamente ali, para que servisse de exemplo. A família de Matityáhu, o Chashmonai, era da dinastia de Yehoyariv, uma das ordens mais respeitadas e distintas de sacerdotes. Era a família que os gregos queriam destruir. Trouxeram um judeu helenista que tentou ofertar um porco a um ídolo grego. Matityáhu se levantou e disse a seus filhos: "Vamos vingar a honra de D'us, como vingou nosso antepassado Pinechás, filho de El'azar, o sacerdote." Por conta dos decretos do soberano, tomou posição contrária. Percebeu que chegara a hora da verdade. Não havia mais lugar para conciliações. Os gregos não deixaram aos judeus outra opção.

Como se conduziu a revolta?

Usou-se uma clássica tática de guerrilha: atacar e bater em retirada. Yehudá, o Macabeu, aproveitou muito bem as duas condições necessárias para uma guerrilha bem-sucedida: locais de refúgio e população simpatizante. Escolheu conduzir a guerra nas montanhas e não na planície, pois o exército grego baseava-se em tática de falanges: destacamento compacto de soldados de infantaria numa formação sólida e intransponível. Com este tipo de formação é possível se proteger num combate somente em áreas planas, não escalando montanhas.

Os ágeis soldados de Yehudá atacavam os inimigos de surpresa e desapareciam. Assim, por exemplo, foi a batalha de Amaús: o exército de Geórgias e Nicanor acampou na planície de Amaús. Contava com 40 mil homens de infantaria e sete mil cavaleiros. Yehudá e seus homens aguardavam, acampados no mirante, em frente a Jerusalém, com apenas três mil homens. Geórgias dirigiu, numa tentativa, metade de seu exército para empreender um ataque noturno surpresa sobre o acampamento de Yehudá. Este, que conhecia as intenções dos gregos, retirou-se com todo seu acampamento. Saiu com seus homens para um ataque noturno de surpresa sobre o resto das tropas gregas, que ficaram no acampamento em Amaús. Depois que os afugentou, reuniu seus homens para enfrentar Geórgias.

Entrementes, Geórgias, que chegou ao campo abandonado dos judeus, deu meia-volta e tentou retornar a seu acampamento. Qual não foi seu espanto diante das colunas de fumaça que subiam de sua base e ao se deparar com o exército de Yehudá pronto a atacá-lo! Seus soldados atrapalharam-se e, perplexos, espalharam-se para todos os cantos.

Yehudá tinha uma estratégia militar global?

Seu objetivo era chegar a Jerusalém e purificar o Templo. Precisava impedir que outros exércitos gregos se reunissem com o que se encontrava em Jerusalém, no forte de Chacra. Em todas suas grandes batalhas, estava impedindo os exércitos gregos de chegar em Jerusalém. Depois de derrotar os exércitos enviados, subiu a Jerusalém e lá sitiou o forte de Chacra, que enfraqueceu por falta de reforço.

O milagre de sua vitória se expressa também pelo erro básico dos gregos: subestimaram a força de Yehudá. Consideravam-no um inseto incômodo, necessitando ser esmagado, mas não como uma ameaça militar concreta.

Os gregos perceberam seu erro posteriormente. Dois anos depois que os Chashmonaim purificaram o Templo, enviaram um grande exército que chegou aos portões de Jerusalém e quase a conquistou. Se obtivessem êxito, a vitória de Chanucá seria enquadrada apenas como um episódio passageiro. Mas justamente então, eclodiu uma rebelião interna na Síria e o general precisou retornar para lá. Podemos afirmar que este milagre de Chanucá era tão grande quanto aquele que conhecemos.

Toda a rebelião foi um passo lógico?

A revolução iniciou-se como uma luta desesperada, depois que puseram os judeus contra a parede. A causa era somente religiosa, sem finalidades políticas. Porém, quando se iniciou esta marcha, constatou-se que não dava para alcançar a independência religiosa e parar por aí. Sem âmbito político, a religião também ficou em perigo. Fato é que os gregos continuaram tentando acabar com a revolução mesmo após a morte, em batalha, de Yehudá. Somente em 141 A.E.C., na época de Shim'on, foi alcançada a liberdade total e fundado um estado judeu independente. O percurso dos Chashmonaim foi de três estágios: primeiro, a liberdade religiosa, depois, a política e, por fim, a de toda a Terra de Israel, nos dias de Alexandre Yanai.

Qual a lição atual que podemos extrair da história de Chanucá?

Não há dúvida que também hoje enfrentamos uma cultura ocidental. Ela atrai; é fascinante. É um espírito multinacional, mas na verdade é tão perigosa para a sobrevivência do judaísmo como o foi então. Hoje é chamada de cultura ocidental. Ela se traduz, por exemplo, em programas americanos a que assistimos na televisão e na música ocidental. Pode-se perguntar: que mal há nisso? Não há símbolos religiosos proibidos! É só cultura! Mas observe quantas centenas de milhares de israelenses já se mudaram para os Estados Unidos. E há aqueles em perigo iminente de assimilação. Ou seja, a abertura do mundo ocidental pode, de uma certa maneira, colocar-nos em perigo.

Aplicando uma analogia inversa, vejamos o que ocorreu com nossos irmãos na Rússia. O que os salvou? Foi justamente a não-abertura do governo russo. O anti-semitismo russo, que não há no Ocidente, resguardou seu judaísmo - talvez até mesmo contra sua própria vontade. É muito triste dizer isso, mas é a realidade.

O senhor está afirmando que, não fosse a coerção na época dos Chashmonaim, a cultura helenista teria dizimado de maneira elegante e perigosa o povo judeu muito mais do que o fariam os decretos?

De maneira indireta, é possível haver nisto certa razão. A imposição anti-religiosa e a revolução trouxeram o fim do helenismo silencioso que, se continuasse, poderia pôr em risco partes importantes do povo judeu. É o que ocorre em nossos dias. Muitos judeus dizem: "Isso não é assimilação, é apenas um enfeite." E esta é exatamente a pergunta: quando um apêndice externo se torna algo interno e significativo?

Como resumiria a mensagem de Chanucá?

Não há dúvida de que toda a história de Chanucá foi uma postura de proteção perante a torrente de helenismo que varria todo o Oriente. E este escudo é um fenômeno sobrenatural. É característica da onda levar tudo o que encontra em seu caminho. Os judeus obtiveram êxito em deter o andamento natural da História dizendo: "Basta! Até aqui!" Esta cultura pára no limiar; pois se entrar não deixará atrás de si nenhuma essência judaica palpável.

     
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