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A
vida é um dia encerrado entre duas noites – a noite do "ainda
não" e a noite do "não mais", após
a morte. Aquele dia pode ser nublado com sofrimento e frustração,
ou brilhante com calor e contentamento. Mas, inevitavelmente, a noite
da morte deve chegar.
A morte é uma noite que jaz entre dois dias – o dia da vida
na terra e o dia da vida eterna no Mundo Vindouro. A noite pode chegar
subitamente, no piscar de um olho, ou pode vir gradualmente, como um sol
se afastando aos poucos.
Assim como o dia da vida é um interlúdio, também
a noite da morte é um interlúdio. Como o dia inevitavelmente
se estende até o crepúsculo, também a escuridão
inevitavelmente é seguida pela alvorada. Cada porção
– a existência fetal, a vida, a morte e a vida eterna –
está separada por um véu que o entendimento humano não
consegue penetrar.
Nós, os sobreviventes que não acompanham o falecido em sua
jornada dentro da noite, ficamos sozinhos contemplando o vazio velado,
negro. Há uma onda de emoções conflitantes agitando-se
dentro de nós: atordoamento e paralisia, agonia e entorpecimento,
culpa e raiva, medo, futilidade e dor – e também emancipação
de cuidados e preocupações. A corrente dourada do elo familiar
está quebrada e balança diante de nossos olhos. Todo o nosso
ser está convulsionado. O amor e esperança desapareceram,
e em seu lugar ficou apenas o desespero. A preciosa alma que tocou nossa
vida e aumentou seu senso de propósito e significado não
está mais aqui. Nosso único consolo é que já
existiu. Há um passado, mas o passado não está mais;
e o futuro ainda é nebuloso. A corrente quebrada, balançando,
nos hipnotiza e ficamos congelados.
O Judaísmo é uma fé que abrange tudo que há
na vida, e a morte é parte da vida. Assim como essa fé nos
leva a momentos de júbilo, também nos guia através
dos terríveis momentos de dor, apoiando-nos firmemente através
das complexas emoções do luto, e nos fazendo desviar o olhar
da noite de trevas para a luz do dia da vida.
No momento da morte, dolorosas dúvidas nos mortificam interiormente
– problemas existenciais e filosóficos tão teimosos,
que parecem não querer se afastar. Por que foi esta pessoa, de
todas as pessoas que preenchem nosso grande mundo, fadada a terminar seus
dias justamente agora? Por que o fim vem antes que a lógica da
vida ordenasse que viesse? A morte deveria ser, sentimos, uma soma abaixo
da última linha – o total de todas as variadas experiências
da vida. Deveria chegar a uma conclusão significativa, e terminar
naturalmente. Não deveria se intrometer no meio das equações
dos vivos, desmanchando todos os cálculos, confundindo todos os
números, desmentindo todas as soluções preparadas.
Mas, muitas vezes, o fim é abrupto. A vida continua sendo um grande
problema desconhecido, incalculável, atormentado pela morte.
No momento da morte há uma grave desorientação. Ficamos
perplexos não apenas pelas grandes questões de vida e morte,
mas pelos problemas de como nos sentir e nos comportar adequadamente:
como devemos reagir à tragédia? Qual é o respeito
adequado que devemos dar ao morto? Como atingimos uma medida de dignidade
durante um enterro? Devemos prantear a vida não completada do falecido,
levado antes de terminar seus assuntos da vida, ou devemos nos sentir
perdidos, agonizando pelo nosso próprio sofrimento pessoal?
E de que maneira devemos nos consolar? Devemos aparecer perante a família
e amigos com coragem e dignidade intocadas? Ou podemos dar vazão
à angústia numa cascata de lágrimas? Devemos participar
das amenidades costumeiras de uma ocasião social obtida com a reunião
da família, ou devemos nos preocupar com a alma ferida pela nossa
perda e deixar que o mundo trate de si mesmo?
Milhares de anos de nossa rica tradição nos fornecem orientação
durante esses momentos de crise. A sabedoria acumulada das eras é
uma fonte de grande consolo.
A dor do coração não vai desaparece subitamente.
Não haverá um consolo mágico. Mas o Judaísmo
ensina ao coração que sofre como expressar sua dor com amor
e respeito, e como conseguir um consolo que nos devolve à humanidade
e nos afasta da auto-piedade.
A morte não é o fim, senão o princípio. Nossa
vida neste mundo é uma preparação para o mundo Vindouro.
A mente humana é limitada para compreender os desígnios
de D'us, único e ilimitado, Criador de todos os seres e do universo.
As leis que regem o sepultamento, o luto judaico e seus costumes são
marcados pela simplicidade e desprovido de ostentações.
Os dias de Israel se aproximavam da morte; e ele chamou seu filho, Yossef,
e lhe disse:“… Faça-me uma bondade e uma verdade…
Eu repousarei com meus ancestrais; leve-me para fora do Egito, e me enterre
no local de repouso deles”
Bereshit 47:29-30
“Faça-me uma bondade e uma verdade – uma bondade feita
para os mortos é uma verdadeira bondade, pois não se espera
um favor em retorno.
Rashi, ibid.
O Midrash relata que quando D’us quis criar o homem, a Verdade argumentou
que “ele não deveria ser criado, pois está repleto
de mentiras.” A bondade, no entanto, disse: “Ele deveria ser
criado, pois está repleto de bondade.”[1]
O Midrash não diz qual foi a resposta da Verdade àquele
argumento, mas podemos deduzir que ela disse: “Mas esta, também,
é apenas outra das mentiras do homem. Sim, o homem faz atos de
bondade para seus semelhantes, mas não porque está ‘repleto
de bondade’ – somente porque espera que devolvam o favor.”
Porém há um ato de bondade que prova que a Verdade está
errada: a bondade feita aos mortos. Esta “bondade e verdade”,
como a Torá a chama, demonstra que o homem é capaz de um
ato realmente altruísta, provando assim que todos os nossos atos
de bondade – mesmo aqueles superficialmente manchados por motivos
egoístas – são verdadeiros na essência, derivando
de um desejo intrínseco de dar de nós mesmos aos nossos
semelhantes.
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