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  A Identidade de Yitró
 
Por Eli Touger – Traduzido por Moishe Klajnberg
 

Poucas leituras semanais da Torá recebem o nome de uma pessoa; portanto, sempre que esta associação é feita, ela demanda especial atenção. E se isto for verdade em relação às outras leituras da Torá, certamente se aplica à Parashá Yitró, a história da entrega da Torá. Chamar a porção de Yitró indica uma conexão entre ele e os acontecimentos.

Quem foi Yitró1? A Torá o descreve como o kohen de Midian. Nossos Sábios oferecem duas definições para a palavra kohen2:

a) “Governante”. Yitró governava a terra de Midian.

b) ”Sacerdote”. Ele liderava os midianitas em sua devoção. De fato, nossos Sábios relatam3 que Yitró tinha reconhecido todas as falsas divindades no mundo.

A conexão entre a primeira interpretação e a entrega da Torá é óbvia, pois ela reflete a extensão do compromisso de Yitró. Apesar de ele ter vivido com riqueza e conforto, ele estava preparado para viajar para o deserto para ouvir as palavras da Torá4. Mas a segunda interpretação é problemática. Nossos Sábios nos ensinam5 que é proibido dizer a um convertido: “Lembre de teus atos anteriores”.

Identificando as Divindades, Reconhecendo D’us
Para resolver esta questão, é necessário entender a origem da idolatria. O Rambam escreve6:

Durante a época de Enosh, a humanidade cometeu um grande erro... Eles disseram que D’us criou as estrelas e esferas para, com elas, controlar o mundo. Ele as colocou no alto e as tratou com honra... Consequentemente, é adequado [ao homem] louvar e glorificar [estas entidades] e tratá-las com honra.

Assim, a adoração de falsas divindades tem suas raízes em um mal-entendido – a de que D'us influencia este mundo por meio de intermediários.

Nossos Sábios comentam7: “Não há nenhuma folha de grama neste plano [material] que não tenha uma força espiritual compelindo-a a crescer”. Adoradores de ídolos, entretanto, atribuem autoridade independente a esses intermediários, achando que eles têm controle sobre a influência que espalham. Na verdade, esses “deuses” são meramente “um machado na mão de um lenhador”8, sem nenhuma importância ou vontade própria e, portanto, é errado e proibido adorá-los9.

Ao dizer que Yitró tinha reconhecido todas as falsas divindades no mundo, nossos Sábios indicam que ele tinha consciência de todos os diferentes meios pelos quais D’us canaliza a energia para o mundo. Apesar de seu conhecimento desses poderes espirituais, ele rejeitou sua idolatria declarando10: “Abençoado seja D'us... Agora eu sei que D’us é maior que todas as divindades”.

O Microcosmo Encorajando o Macrocosmo

O reconhecimento de D’us por Yitró não foi meramente uma questão pessoal. Suas palavras de louvor produziram “a revelação de D'us em Sua Glória nos mundos superiores e inferiores. Depois disso, Ele entregou a Torá, em perfeita [confirmação de] Seu domínio sobre toda a existência” 11.

O reconhecimento individual de D’us por Yitró expressou o propósito da entrega da Torá. Isto preparou o macrocosmo, o mundo em geral, para uma revelação como esta.

Explicando: O Rambam declara12 que “a Torá foi dada somente para criar paz dentro do mundo”. Entretanto, a paz não é o objetivo da existência da Torá; a Torá existia antes da criação do mundo13. Ela é a sabedoria de D’us14, unida com Ele15.

Portanto, assim como D’us transcende o conceito de propósito, também assim faz a Torá. O Rambam, entretanto, focaliza não sobre o objetivo da própria Torá, mas sobre a entrega da Torá – porque a Torá foi concedida aos mortais. Ele explica que a Torá foi dada não somente para espalhar a Luz Divina, mas para cultivar a paz.

Quando os Pares se Encontram

A paz se refere à harmonia entre opostos. Em um certo sentido, ela se refere à solução da divisão entre o físico e o espiritual, o movimento adiante que torna possível um mundo no qual a presença de D’us não está visivelmente evidente para reconhecer e ser permeado pela verdade de Sua Existência.

Sobre o versículo16 “Os céus são os céus de D'us, mas a terra Ele deu aos filhos do homem”, nossos Sábios explicam17 que, originalmente, havia um decreto Divino separando o físico do espiritual, isto é, a natureza da existência material nos afastava da verdadeira apreciação da realidade espiritual18. No momento da entrega da Torá, entretanto, D’us “anulou esse decreto” e permitiu que a união fosse estabelecida entre as duas.

Além disso, a verdadeira paz envolve mais do que a mera negação da oposição. A intenção é que as forças que existiam previamente ao acaso devem reconhecer algo em comum e se unirem em atividades positivas. Da mesma forma, a paz que a Torá estimula não envolve meramente uma revelação da Divindade tão grande que o mundo material seja forçado a reconhecê-la. Em vez disso, a intenção da Torá é produzir uma consciência de D’us dentro do contexto do próprio mundo.

Existe Divindade em todo elemento da existência. A todo o momento, a Criação está sendo renovada; se a energia criativa de D'us faltasse, o mundo voltaria ao nada absoluto19. A Torá nos permite apreciar essa Divindade interior e nos capacita a viver em harmonia com ela.

Em um sentido pessoal, o reconhecimento por Yitró da supremacia de D’us cumpriu esse objetivo. De seu envolvimento com “todas as falsas divindades do mundo”, ele chegou a um profundo reconhecimento da soberania de D'us20. A transformação de Yitró tornou possível a entrega da Torá que, por sua vez, transforma o mundo.

Da Escuridão à Luz

O Zohar21 associa a transformação da existência material com o versículo22 “Eu vi uma vantagem da luz sobre a escuridão”. A palavra Yisaron (compartilhando a mesma raiz que o nome Yitró), traduzida como “vantagem”, também pode ser entendida como “qualidade superior”. Assim, o versículo pode ser interpretado como indicando que a luz que vem da transformação da escuridão possui uma qualidade superior.

Há duas implicações disto. Primeiramente, que a transformação da escuridão resulta em uma maior qualidade da luz do que a que seria revelada e, em segundo, que essa luz superior não se opõe ao mundo material. Ao contrário, a escuridão do mundo é sua fonte.

O Caminho para a Redenção
O Tanya23 descreve a entrega da Torá como um prelúdio da Era da Redenção. Quando a Torá foi dada, toda a existência ficou em um estado de absoluta unidade com D’us.

No momento da entrega da Torá, entretanto, a revelação dependeu da iniciativa de D’us. Já que o mundo ainda não tinha sido refinado, sua natureza se opôs à manifestação da Divindade e, assim, a revelação milagrosa não permaneceu. Nos séculos que se seguiram, entretanto, a observância da Torá e às suas mitzvot pela humanidade tem lentamente costurado a Divindade no tecido do mundo. Na Era da Redenção, a separação será permanentemente dissolvida e nós perceberemos que nosso mundo é a moradia de D’us24.



NOTAS
1. Shemot 18:1.
2. Ver o Mechilta sobre este versículo.
3. Mechilta sobre Shemot 18:11; Zohar, Vol. II, p. 69a; Rashi, Shemot 18:9.
4. Rashi, Shemot 18:5.
5. Ver Bava Metzia 58:13, citado em Mishneh Torah, Hilchos Mechirah 14:13.
6. Mishneh Torah, Hilchos Avodas Kochavim 1:1.
7. Bereishis Rabbah 10:6, Zohar, Vol. I, p. 251a.
8. Cf. Yeshayahu 10:15. Ver o maamar VeYadaata 565 7 onde este conceito é explicado detalhadamente.
9. Ver o 5º dos Treze Princípios da Fé do Rambam (Comentário sobre a Mishnah, Introdução ao Décimos Capítulo do Sanhedrin).
10. Shemot 18:10-11.
11. Zohar, Vol. II, p. 67b.
12. Rambam, Mishneh Torah, a conclusão de Hilchos Chanukah. A fonte de Rambam é uma questão de discussão. O Tzemach Tzedek (Or HaTorah, Mishlei, p. 553) cita Gittin 59b. Ver Likkutei Sichos, Vol. VIII, p. 349ff.
13. Midrash Tehillim 90:4, Bereishis Rabbah 88:2.
14. Tanya, cap. 3.
15. Zohar, Vol. I, p. 24a.
16. Salmos 115:16.
17. Shmos Rabbah 12:3. Ver o ensaio intitulado “O Quê Aconteceu Com O Sinai” (Timeless Patterns in Time, Vol. II, p. 91ff, Kehot, 1994) que explica este conceito.
18. De fato, a palavra hebraica para “mundo” (Likkutei Torah, Bamidbar 37d) ????, compartilha a mesma raiz que a palavra ????, significando “ocultação”.
19. Tanya, Shaar HaYichud VehaEmunah, cap. 1.
20. 20. Yitró reconheceu, de boa vontade, a presença de D’us e se esforçou para modificar sua vida para se adaptar com sua apreciação. Outros povos também ficaram temerosos pelos milagres do Mar Vermelho e reconheceram o poder de D’us, como está escrito (Shemot 15:14-16): “Povos ouviram e tremeram... Os [habitantes de] Canaã fundiram-se. Medo e apreensão caíram sobre eles”. Diferentemente de Yitró, entretanto, eles não refletiram esta apreciação de D’us em sua conduta.
21. Zohar, Vol. III, p. 47b.
22. Ecclesiastes 2:17.
23. Cap. 36.
24. Cap. 36.
     
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