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  A Última Lição de Yaacov
 
Por Yosef Y. Jacobson
 

O rabino e seu motorista

Um famoso rabino, brilhante filósofo, era altamente respeitado pelo seu motorista, que escutava com respeito cada discurso, quando seu chefe respondia com facilidade questões sobre moralidade, ética e filosofia.

Então um dia o motorista aproximou-se do rabino e perguntou se ele estaria disposto a trocar os papeis para a palestra daquela noite. O rabino concordou e, durante algum tempo, o motorista se saiu notavelmente bem. Quando chegou a hora das perguntas feitas pelos convidados, um homem lá do fundo perguntou: “A visão epistemológica do universo ainda é válida num mundo existencialista?

“Essa é uma pergunta extremamente simples,” respondeu ele. “Tão simples, na verdade, que até meu motorista poderia respondê-la, e é exatamente isso que ele vai fazer.”


O professor desligado
O professor estava sempre tão envolvido no texto que estava ensinando que nunca olhava para seus alunos.

Ele costumava chamar um aluno para tradução e explicação e – sem perceber – com frequência chamava o mesmo aluno dia após dia.

Por respeito, os alunos não falavam sobre isso com ele. Após ser chamado por quatro dias seguidos, um aluno chamado Goldberg pediu conselho aos seus amigos.

No dia seguinte, quando o rabino disse “Goldberg, traduza e explique,” Goldberg respondeu: “Goldberg faltou hoje.”

“Tudo bem,” disse o rabino, “então você traduz e explica.”


A Lição Final
Há uma antiga tradição midráshica1, de que a última lição de Yaacov com seu amado filho Yossef horas antes de ele ser sequestrado e vendido como escravo, era sobre uma lei a respeito de um assassinato não solucionado na porção de Shofetim.

Todos estamos familiarizados com a narrativa. Yossef que tinha 17 anos na época, foi solicitado pelo pai a visitar seus irmãos que estavam pastoreando o rebanho da família perto da cidade de Shechem. Quando o rapaz chegou a Shechem, os irmãos o sequestraram e o jogaram num fosso; em seguida o venderam como escravo a mercadores egípcios.

Yossef terminou trabalhando para um dignitário egípcio, depois passou 12 anos numa masmorra egípcia e finalmente se tornou vice-rei daquele país.2

Vinte e dois anos após Yossef ser arrancado de seu pai, a Torá relata3 que Yaacov soube que ele estava vivo, mas não pôde acreditar. O Midrash relata que como Yossef suspeitava que isso pudesse acontecer, ele deu aos emissários um sinal para demonstrar ao pai a autenticidade da mensagem: “Digam ao meu pai,” Yossef sugeriu, “que quando eu o deixei há 22 anos, tínhamos acabado de completar o estudo das leis do bezerro que foi levado como expiação para um assassinato não resolvido.”

Este, explica o Midrash, é o significado do versículo bíblico que diz: “Eles contaram a ele, ‘Yossef ainda está vivo e ele é o governador de todo o Egito,’ mas seu coração rejeitou isso, pois ele não podia acreditar neles. Porém, quando relataram a ele todas as palavras que Yossef lhes tinha dito, e ele viu as carroças que Yossef tinha enviado para transportá-lo, então o espírito de Yaacov foi revivido.”

O termo hebraico usado para carroças (“agalos”) também pode ser traduzido como bezerros. “quando Yaacov ‘viu’ os bezerros que Yaacov enviou,” i.e., quando ele entendeu que este líder egípcio sabia o conteúdo da última lição de Torá que Yaacov ensinara a Yossef, Yaacov percebeu que este homem era de fato seu filho perdido, Yossef.



Um assassinato não solucionado
Qual é exatamente a natureza dessa lei que Yaacov ensinou a Yossef? Ela é discutida no Livro de Devarim:

“Quando um cadáver é encontrado caído no campo na terra que D'us dá para você,” a Torá instrui4, “não se sabe quem é o assassino, seus anciãos e juízes devem sair e medir a distância até a cidade mais próxima,” onde presumimos que a vítima estava antes de seu assassinato. O Talmud explica que uma delegação de cinco membros do Supremo Tribunal Judaico em Jerusalém (conhecido como o Grande Sanhedrin) ia ao campo onde a vítima foi encontrada e fazia as medidas até a cidade mais próxima5.

Em seguida, os anciãos daquela cidade situada mais próximo ao cadaver eram obrigados a sair e levar um novilho como expiação pelo sangue do homem assassinado. Os anciãos da cidade então declaravam: “Nossas mãos não derramaram este sangue e nossos olhos não testemunharam isso6.”

Então os sacerdotes que acompanhavam os anciãos no ritual imploravam a D'us, dizendo: “Perdoa Teu povo… não permite que a culpa pelo sangue inocente permaneça com Teu povo Israel7.”

A Torá conclui dizendo que “O sangue assim deve ser expiado. Vocês devem se livrar da culpa do sangue inocente em seu meio, pois fizeram aquilo que é moralmente certo aos olhos de D'us8.”

Porém a questão interessante é: foi apenas uma coincidência que o último pedaço de sabedoria que Yossef recebeu de seu pai antes da separação de 22 anos estivesse concentrada na resposta judaica a um homem inocente morto no campo? Ou havia algo mais profundo sobre essa conversa final entre pai e filho9?


Uma crise nacional
Para responder a essa pergunta, devemos examinar o propósito do enigmático ritual que se seguia à descoberta de uma vítima assassinada no campo – onde membros da Suprema Corte, o grupo mais exaltado e distinto no estado judeu, era requisitado a ir e tomar medidas; os anciãos da cidade eram obrigados a oferecer um bezerro como expiação e os sacerdotes precisavam rezar pelo perdão.

Os comentaristas bíblicos explicam que o ritual conseguia vários benefícios10:

1 – O ritual servia como um meio para divulgar o evento. A publicidade aumentava as chances de apreender o assassino e levá-lo à justiça. Seria também um aviso a todos os potenciais futuros assassinos para que eles não saíssem impunes do assassinato de um homem inocente.

2 – A Torá considerava cada membro da cidade próxima e até cada membro da nação inteira indiretamente responsável pelo assassinato. Como proclamavam os sacerdotes durante o ritual: “Perdoa Teu povo; não permite que a culpa pelo sangue inocente permaneça com Teu povo Israel.”

“Poderia ocorrer a alguém que os anciãos do tribunal são assassinos,” pergunta o Talmud11?” O que eles queriam dizer era que “talvez nós não o vimos saindo e e mandamos embora sem comida e sem escolta.” Claramente, se tivéssemos olhado por este homem, ele poderia não ter sido assassinado. Se ele tivesse recebido abrigo, comida e companhia, poderia ter escapado desse horrível destino. O que ele estava fazendo sozinho na terra de ninguém? Por que ninguém cuidou dele?

Por isso a comunidade inteira de Israel, começando com os membros da Suprema Corte, precisavam fazer duras perguntas a si mesmos. Eram obrigados a tomar resoluções para o futuro. O ritual servia como uma ferramenta para arrependimento e expiação.



Os excluídos
Toda mitsvá e lei na Torá contém, além de sua interpretação literal, uma dimensão psicológica e espiritual.

Qual é o significado de “um cadáver caído no campo” num nível psicológico? A Torá descreve o grande lutador Esaú (irmãos gêmeo de Yaacov) como “um homem do campo12.” Nos ensinamentos da Cabalá13, um campo – oposto à cidade – com frequência somboliza um ambiente que não tem cerca protetora, um local aberto e vulnerável a forças destrutivas da imoralidade, abuso e vício.

Toda comunidade produz um certo número daquilo que gostamos de chamar “excluídos”, que a certa altura da vida, em especial durante a adolescência, abandonam a “cidade” protegida e entram no “campo” abandonado para experimentar aquilo que está disponível ali. Muitos deles perdem a alma no processo e terminam caindo no abismo, emocionalmente assassinados nos campos da morte do vício, desespero e indiferença moral.

A Torá nos ensina que cada uma dessas almas que terminaram no “campo” e encontraram uma forma de morte emocional – morte da inocência, da esperança, da dignidade e do significado – é a preocupação e responsabilidade de todo membro da nação de Israel, incluindo os gigantes espirituais da Suprema Corte de Jerusalém!

Quando um ser humano vaga pelos campos assustadores da desesperança, todo indivíduo da comunidade, especialmente seus mestres e líderes espirituais devem sacudir os céus. Cada um de nós deve se perguntar: “Talvez não tenhamos percebido ele saindo e o enviamos para fora sem comida e sem escolta.” Este adolescente precisou de alguém para conversar sobre suas frustrações e dúvidas mas não pôde encontrar ninguém? Este jovem estava ansiando por amor, encorajamento, inspiração, sem conseguir?

Cada um de nós deve ser perguntar: “Não somos responsáveis de alguma maneira pela deterioração mental e psicológica desse jovem?”

Diretores, educadores e líderes de comunidades com frequência falam sobre estatísticas. “As estatisticas mostram,” eles nos informam, “que uma certa porcentagem de alunos do ensino médio terminam…” Quando o futuro de uma criança em particular é colocado em questão, temos a resposta pronta: “O que você espera? Ele ou ela é parte da estatística.”

Não pretendo ser rigoroso, mas devemos nos lembrar que foi Yossef Stalin que disse: “Uma única morte é uma tragédia; um milhão de mortes é estatística.” Quando começamos a ver as pessoas como estatísticas, sabemos que nossa sociedade está desmoronando. Vidas humanas não são meios; são fins em si mesmas. O valor e santidade do destino de um indivíduo é infinito, absoluto e eterno.


Os Julgamentos de Nuremberg
Em “Julgamento em Nuremberg”, o juiz americano Dan Haywood condena Ernst Janning, uma importante figura legal na Alemanha antes até do surgimento de Hitler, à prisão perpétua por condenar um médico judeu inocente à morte em 1935. Janning suplica a Haywood que não sabia da magnitude do horror nazista e que jamais teria ajudado Hitler se soubesse o que aquele monstro estava planejando.

“Aquelas pessoas, aqueles milhões de pessoas,” Janing implorou pela sua liberdade, “eu nunca soube que chegaria àquilo. Você precisa acreditar nisso.”

Ao que o juiz Haywood respondeu: “O ponto é que da primeira vez que você condenou um homem à morte você sabia que ele era inocente.”

No momento em que uma única vida perde o valor absoluto, mil vidas, até um milhão de vidas, não têm valor; são meramente números mais chocantes.

Esta é a mensagem essencial por trás da mitsvá de transformar o assassinato de um homem sem teto encontrado num campo isolado num evento nacional. A Torá está tentando nos ensinar que se o inferno não se agita com a morte injusta de um único indivíduo, estamos a caminho da absoluta decomposição moral; conseguimos abandonar a parte mais importante da humanidade – ver cada e toda vida como um reflexo de D'us.


Você é importante!
Acima de tudo, este ritual sobre um ser humano sendo assassinado no campo dá um mensagem para aquelas crianças ou adultos que se encontram no “campo” da confusão e da depressão.

A mensagem é que sob a perspectiva de D'us, sua vida individual e seu destino contêm valor e significado. Se você “morrer”, D'us espera que todos sintam a dor, para tomar parte no caminho da introspeccão. Sua jornada, sua luta, seu futuro são da maior importância para D'us, para o mundo, para a história. Saiba que toda ação conta, que cada palavra tem poder infinito. Construa cada dia da sua vida como se fosse uma obra de arte. Agora entenderemos por que a providência fez Yaacov ensinar essa lição a Yossef horas antes de ele ser atirado a uma nova realidade infernal. Pois esta foi a mensagem que salvou um Yossef vulnerável de cair no abismo, após ser brutalmente separado de uma cidade abrigada e sagrada e ser jogado no “campo” mais depravado da terra.

A última lição que Yossef ouviu do pai imbuiu-o com a convicção inabalável de que sua vida, cada momento dela, era eternamente importante; que suas escolhas tinham significado divino.

Vinte e dois anos depois, quando Yaacov soube que Yossef não esquecera aquela última lição, a alma de um pai foi trazida de volta à vida. Yaacov reconheceu que apesar de todo o sofrimento e abuso que Yossef passou, não perdera a centelha interior que dá à nossa vida nobreza e significado intermináveis.

Este ensaio é baseado numa palestra do Rebe em agosto de 1981


Notas

1. Midrash Rabah Vayigash 94:3; Tanchumah Vayigash seção 11; Rashi sobre Bereshit 45:27-2
2. Bereshit 37:12-41:45.
3. Bereshit 45:26-27
4. Devarim 21:1-2
5. Soteh 44b. Citado por Rashi sobre Devarim ibid.
6. O heifer foi decapitado. Há uma tradição midráshica divergente de que o heifer foi meramente atingido no pescoço e portanto pôde fugir e encontrar a casa do assassino (Midrash Agadah; Bechaya).
7. Devarim 21:3-8
8. Ibid. Versículos 8-9
9. Outro ponto em questão: Pelo Midrash parece que o espírito de Yaacov foi revivido primeiramente por causa da informação que ele recebeu de que Yossef lembrava tão bem da lição final. Porém isso parece incompleto: a notícia de que Yossef estava vivo era insuficiente para restaurar a vida e a alegria de Yaacov? (Veja Likutei Sichot vol. 30 pág. 222).
10. Veja Rambam, Guia para os Perplexos 3:40, citado em Ramban e Bechaya sobre Devarim 21:1. Cf. Sefer HaChenuch Mitsvá 530 e Abarbenel sobre a Parsah. Veja também Kesef Mishnah sobre Hilchot Rotzach 10:6, Behaya sobre Devarim 21:1. Ramban ibid. Cf Likutei Sichot vol. 24 págs. 126-8 e na nota #59 e referências ali anotadas.
11. Soteh 45 b. Citado em Rashi ibid. 21:7.
12. Bereshit 25:27
13. Or Hatorah sobre Bereshit ibid (pág. 142b); Likutei Torah Reah pág. 32b; referências notadas em Likutei Sichot vol. 30 pág. 223 nota nš 17.
     
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