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  Entre tulipas…
  Rabino Chefe da Inglaterra, Professor Jonathan Sacks
 

Todo ano, vejo-me profundamente comovido pelo cerimônia do Domingo da Recordação no Cenotáfio. Embora comemore eventos ocorridos antes que a maioria de nós tivesse nascido, fala eloqüentemente das qualidades que iremos precisar se quisermos construir um futuro decente.

Conhecimento originalmente como Dia do Armistício, foi instituído para marcar o momento em que os canhões silenciaram ao final da Primeira Guerra Mundial em 1918, na décima primeira hora do décimo primeiro dia do décimo primeiro mês. As papoulas são lembretes daqueles que cresceram nos campos de Flandres, onde algumas das batalhas mais sangrentas e prolongadas se travaram. Foi chamada de a guerra que terminaria com todas as guerras, mas 21 anos depois o mundo mais uma vez se tornou um campo de batalha. Paz e liberdade são difíceis de conquistar, mas são ainda mais duras de manter.

Como guardiães do futuro de nossos filhos, devemos manter a fé com o passadoO que há nessa cerimônia que a torna tão potente? Antes de mais nada é um evento nacional, um ato de identidade coletiva e de união. Reunidos sob o cenotáfio ficam a Rainha e os membros da família real, primeiros-ministros do passado e do presente, representantes do Parlamento e governos da Comunidade Européia, chefes das forças armadas, líderes religiosos, e acima de tudo o grande contingente de homens e mulheres ex-combatentes, que lutaram pela liberdade que agora desfrutamos. Se procurarmos um símbolo vivo da coesão social – uma nação unida na dedicação a um ideal – está ali.

Em segundo lugar, isso nos lembra da dívida que temos com aqueles que vieram antes de nós. É um ato de agradecimento que o presente presta ao passado – talvez o único presente que os vivos podem dar aos mortos. A sociedade, disse Edmund Burke, é um contrato entre os mortos, os vivos e aqueles ainda não nascidos; e sem este senso de lealdade entre gerações jamais faríamos os sacrifícios necessários para um futuro que não viveremos para ver. Devemos fazer espaço, por meio do silêncio público, para escutar o chamado através dos anos daqueles que morreram: "Quando vocês forem para casa fale de nós para eles, dizendo: "Pelo seu amanhã nós demos o nosso hoje."

Em terceiro lugar, isso nos diz que não pode haver identidade sem um senso de história. Ser britânico, seja por nascimento ou por adoção, é fazer parte de uma história, honrada e repetida em rituais, símbolos e cerimônias de lembrança. Uma nação não é meramente um local onde por acaso estamos. É também uma narrativa da qual fazemos parte. Uma sociedade é mais que uma agregação de pessoas num determinado espaço. Existe também a dimensão do tempo. É tecida pelos fios entremeados da memória coletiva, aprendida na escola, incorporada nas instituições, refletida na arte, literatura, poesia e música do país. Deixe isso se perder e uma nação sofrerá do equivalente coletivo do Mal de Alzheimer.

Hoje enfrentamos novas batalhas, muito diferente daquelas do passado. Há a luta contra o terrorismo e os pregadores do ódio. Há o contínuo conflito para trazer estabilidade às partes do mundo assoladas por rivalidade étnicas e religiosas. Há a luta contra doenças passíveis de prevenção que diariamente levam as vidas de trinta mil crianças em todo o mundo. Há a campanha contra a destruição ambiental que ameaça o futuro da vida na terra. Os desafios mudam, mas as virtudes necessárias continuam as mesmas: visão, coragem, propósito coletivo, uma disposição para se sacrificar em prol do futuro – e acima de tudo um senso de história.

A liberdade, disse Moshê no fim da vida, precisa do ativa preservação da lembrança. "Lembrem-se dos dias de antigamente; considerem as gerações há muito passadas. Perguntem ao seu pai e ele lhes dirá, seus anciãos, e eles explicarão a vocês."

Se nos esquecermos quão dolorosamente a liberdade é conquistada, nós a perderemos. Se a tomarmos como algo garantido, ela não sobreviverá. Para sermos guardiões do futuro de nossos filhos, devemos manter a fé com o passado dos nossos ancestrais.

John MacCrae, um médico que serviu nas Forças Aéreas Canadenses em 1915, viu a devastação da guerra e rabiscou em seu bloco de notas um poema curto, "Nos Campos de Flandres", que deu voz imortal aos que morreram por nós:

"A você, com nossas mãos fracas atiramos
A tocha; ela é sua para segurá-la bem alto.
Se você perder a fé em nós que morremos
Não conseguiremos dormir, embora as tulipas cresçam
Nos campos do Flandres."

       
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