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Nascida
em Chicago, é professora da Universidade Bar-Ilan, Israel.
Autora e editora de diversos livros sobre Filosofia Judaica e tradutora
do
Tratado do Rebe, Sobre a Essência do Chassidismo.
Alguém
escreveu certa vez: "Atualmente um judeu é alguém que
tenha netos judeus." Estas palavras são uma ferroada –
talvez mais que quaisquer outras em nossos penosos debates sobre a identidade
judaica.
Obviamente, pela lei judaica tradicional, um judeu é definido como
alguém nascido de mãe judia, ou que tenha se convertido
segundo a Halachá, embora a comunidade judaico-americana esteja
agora engajada num vigoroso debate também sobre estes parâmetros.
A definição acima é apenas metafórica. Incontáveis
judeus passam pelo sofrimento de serem biologicamente incapazes de ter
filhos; outros escolheram não tê-los. Muitos fizeram casamentos
mistos; outros não se casaram, por opção ou destino.
E muitos agora preferem abertamente relacionamentos com membros do mesmo
sexo. Qualquer que seja o caso, é muito raro, de fato, o judeu
que pode estar totalmente certo de que terá netos judeus.
Nos últimos anos, também têm surgido argumentos de
que a tradicional ênfase judaica na família está obsoleta,
porque exclui grande número de judeus da vida judaica. Alguns também
afirmaram que o tradicional núcleo familiar é uma instituição
patriarcal repressiva, que ajudou a excluir as mulheres da plena participação
na vida institucional judaica. Solteiros, divorciados e homossexuais com
freqüência se sentem ofendidos e olhados com condescendência
por uma comunidade que os vê como não-realizados, e como
adultos incompletos, se não forem casados.
"A
Memória" – disse o Báal Shem Tov –
"é o segredo da Redenção."
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O outro
lado argumenta que a família é o alicerce da vida judaica
e a garantia da sobrevivência judaica; que a primeira mitsvá
é "frutifiquem e se multipliquem", e que os ataques contra
a família judaica não emanam das profundezas de um real
engajamento, mas de uma ética de auto-gratificação.
A cultura política contemporânea em geral também está
lutando com outras justificativas de :"valores familiares".
O meu objetivo aqui não é discutir diretamente a opinião
da Torá sobre a homossexualidade, ou os desafios do feminismo,
ou os problemas dos solteiros na comunidade judaica. Ao contrário,
estas questões me despertaram para uma pergunta mais profunda,
subjacente: Além dos costumeiros lugares-comuns, por que a família
é tão importante no Judaísmo?
Definir um judeu como alguém que tem netos judeus – por mais
irônico que pareça – atingiu-me como um conceito profundo.
Define um judeu em termos de família – mas não família
imediata. Valida não apenas a reprodução biológica,
mas também uma continuidade espiritual além do imediato,
e além do tempo. O judeu aqui não é definido por
quão judeu ele ou ela "se sente", ou quanto dinheiro
possa doar, ou nem mesmo por quantas mitvsot consegue cumprir, mas por
ter incorporado e transmitido a Torá tão vitalmente que
seus filhos optaram por permanecer judeu e estão aptos, por sua
vez, a transmitir esta centelha aos próprios filhos. "Três
é uma chazaka" – como diz a tradição judaica,
e isso significa que quando algo é feito três vezes, tem
o elemento da permanência – pode-se confiar na sua estabilidade.
Os netos são a terceira geração; eles confirmam o
Judaísmo da primeira geração. A transmissão
exige uma próxima geração biológica, mas isso
não basta; a biologia é moldada pela espiritualidade, o
ser é impulsionado na direção do outro, a cegueira
do presente rumo à visão do futuro.
O
ensino e sua transmissão também é visto como
"dar à luz", uma forma não-biológica
de ser pai ou mãe.
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Isso
de maneira alguma tem o objetivo de argumentar a simples sobrevivência
ou procriação é que definem o que significa ser judeu.
Porém além de todos os motivos óbvios para nossa
ênfase contemporânea em "sobrevivência" (a
dizimação do Holocausto, a natureza tênue do Estado
de Israel, o declínio no número de nascimento e os casamentos
mistos), o Judaísmo parece estranhamente obcecado com este tema
e com a idéia de família, desde o início. Por quê?
O Livro de Bereshit, por exemplo, é todo sobre famílias,
mulheres estéreis, rivalidades entre irmãos, destruições
por enchente ou fogo, constantes ameaças ao processo de transmissão
e continuidade. A Bíblia narra estes temas em parte para desmistificar
a natureza como uma força controladora e para reforçar a
idéia, então revolucionária, de que o Único
D’us está em controle tanto da natureza quanto da história.
E a história é importante na Torá exatamente porque
D’us está apaixonadamente envolvido nela. Assim como D’us,
o supremo modelo, está envolvido com as brigas de famílias
desde Caim e Abel até os conflitos de nações, assim
também os heróis e heroínas bíblicos envolvidos
– na verdade, definidos – pelos problemas de suas próprias
famílias.
As famílias são a grande cena do conflito espiritual; tanto
naquela época quanto agora, elas são o paradigma das conexão
íntima e da intensa ambivalência. Ao contrário dos
antigos heróis gregos, os heróis bíblicos não
conquistam identidade e glória em solitário combate, longe
de suas famílias; seus problemas são profundamente domésticos.
Não foi por acaso que o teste crítico de Avraham tenha sido
exatamente para sacrificar seu filho… e não ser tentado no
deserto ou ter de sacrificar a si mesmo. Pois o filho não era somente
seu, e a crise não era apenas pessoal; era coletiva. O chamado
para Avraham era para que ele se tornasse uma grande nação;
não foi uma preocupação pessoal com uma única
pessoa. O pacto não foi feito somente com Avraham, mas com todos
os seus descendentes, a família que cresceria até se transformar
na nação que Moshê levou ao Sinai. E a revelação
no Sinai foi coletiva, a todo um povo, não somente a uns poucos
indivíduos de uma elite espiritualmente avançada.
Esta obsessão com a família é remanescente do tribalismo
primitivo? O foco sobre a sobrevivência é o resultado das
tribulações do exílio? E o que isso tudo tem a ver
com nossa necessidade moderna de individualismo e auto-definição?
A família é vital para o Judaísmo, creio, porque
é vital para as idéias judaicas sobre D’us, criação,
pacto e história. A família biológica nos lembra
que nós, como o mundo, somos criados; não somos inevitáveis,
necessários, autônomos. Nós somos um efeito da vontade
de uma outra pessoa e – no melhor dos casos – do desejo de
alguém dar a outro. Nós temos uma história. A criação
do mundo, também, é algo a partir do nada, um ato de fé
e esperança.
Um
rabino amigo meu disse certa vez que ter filhos o fez relacionar-se
muito melhor com D’us. "De que maneira?" perguntei.
"Porque agora eu entendo o que é criar algo sobre
o qual você não tem o menor controle" –
respondeu ele.
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Recusar-se
a deixar nascer a próxima geração é, de certa
forma, não continuar a criação de D’us, recusar-se
a viver na história, e negar o pacto. Pois o pacto é coletivo
e histórico. A Torá é um guia e uma herança
a um povo que tece de viajar não apenas no espaço até
uma Terra Prometida – mas também no tempo, através
das provações de sua história. História –
o principal conflito deste mundo, de suas paixões, suas tentações,
seus prazeres. "A Torá" – como diz o Livro de Devarim
numa passagem famosa – "não está no Céu."
"Toda descida" – dizem os místicos judeus –
"é com o propósito de uma subida." A descida da
alma para o mundo físico, as andanças das pessoas no decorrer
da história, permitem um grande avanço espiritual –
e assim o Talmud compara o povo judeu à azeitona: somente quando
espremida ela produz o azeite.
Este mundo, os relacionamentos humanos do dia-a-dia, são o palco
da ação Divina, tanto para D’us quanto para Israel.
O judeu está engajado em santificar o mundo físico e o tempo
histórico mundano. É por isso que a memória é
importante para os judeus – é a santificação
e o elo entre o passado, presente e futuro, No tempo judaico, o passado
lembra o futuro. "A Memória" – disse o Báal
Shem Tov – "é o segredo da Redenção."
E para colocar isso simplesmente – não há futuro físico,
nenhuma história, sem a reprodução física.
A família é a unidade que cria a vida, o agente mais poderoso
na transmissão de memória pessoal e coletiva. Isso, em parte,
explica por que há tamanha ênfase em "geração"
na Torá, por que ensinar e aprender são tão valorizados
– porque são atos de transmissão para, e recebimento
e renovação pela geração seguinte: da herança,
do presente.
Este ato de ensino e transmissão também é visto como
"dar à luz", uma forma não-biológica de
ser pai ou mãe. Como escreveu o grande filósofo e talmudista
Maimônides (1135-1204) em seu compêndio da Lei Judaica sobre
as Leis do Estudo de Torá:
"Assim como uma pessoa é ordenada a honrar e respeitar seu
pai, também está sob a obrigação de honrar
e respeitar seu mestre, até mais que ao pai; pois seu pai lhe deu
vida neste mundo, ao passo que o professor, que o instrui em sabedoria,
assegura para ele uma vida no Mundo Vindouro." E de modo contrário:
"Os Sábios disseram: ‘Que a honra de seus discípulos
seja tão cara a você como a sua própria’ (Ética
dos Pais, 4:12). Uma pessoa deveria se interessar por seus alunos e amá-los,
pois eles são seus filhos espirituais que lhe trarão felicidade
neste mundo e no Mundo Vindouro."
A ameaça ao pacto é que não haverá ninguém
para transmiti-lo no decorrer da história. Talvez este seja um
dos famosos midrashim, que quando D’us estava para outorgar a Torá,
Ele pediu fiadores que a iriam guardar – e não bastou os
judeus adultos terem prometido cumpri-la. Somente quando eles disseram:
"Nossos filhos serão nossos fiadores" – D’us
concordou em revelá-la.
Assim como os filhos foram dados em garantia antes que tivesse qualquer
opção a respeito – o "eu" não é
uma criação isolada, autônoma, completamente livre.
A família é um pacto. Pois na família, somos continuamente
lembrados de fazer, obrigados a fazer, sofremos intromissões, somos
alegrados e agradados pelos outros. Estamos em constante diálogo
– mesmo que seja furioso. Sim, a pessoa pode se divorciar do cônjuge.
Mas mesmo que o afastamento entre o casal seja grave, o vínculo
biológico do filho com os pais é indissolúvel. Como
Robert Frost declarou: "Lar é o local onde, quando você
tem de ir lá, eles precisam levá-lo para dentro."
Assim, os relacionamentos familiares são um microcosmo, um campo
de treinamento, um lembrete e uma repetição do relacionamento
íntimo do povo judeu com D’us. Por que, afinal, somos chamados
os "filhos" de Israel, os "filhos" de D’us?
Os profetas, obviamente, exploram as implicações dessas
metáforas. No Livro de Yirmiyáhu, D’us pode "divorciar-se"
iradamente do povo judeu como de uma esposa infiel, mas então chora
sentidamente pela sua redenção. "Voltem, ó filhos
extraviados." E a própria Cabalá descreve os vários
aspectos do ser místico interior de D’us (as configurações
das sefirot) em termos de metáforas familiares, "pai, mãe,
filho, filha".
A família pode de fato ser uma instituição repressiva
– assim como qualquer relacionamento que seja distorcido –
mas eu tentei argumentar aqui que o conceito judaico de família
é distinto e integral ao Judaísmo; não se pode reduzi-lo
a um arranjo burguês social de "estilo de vida". É
profundamente teológico. Um rabino amigo meu disse certa vez que
ter filhos o fez relacionar-se muito melhor com D’us. "De que
maneira?" perguntei. "Porque agora eu entendo o que é
criar algo sobre o qual você não tem o menor controle"
– respondeu ele. Isso é irônico e também bastante
sábio. Ter filhos – sejam biológicos, adotados ou
espirituais – é de fato um aspecto de ser feito à
imagem de D’us. Pois a criação de D’us é
um ato da livre vontade Divina, que nos dá livre arbítrio,
e portanto torna nossas ações na história significativas,
e torna a Torá algo nosso, a ser renovado em cada geração.
Um filho é tanto ele mesmo e completamente outro. De maneira semelhante
no processo de transmissão, a Torá é a mesma e outra
– totalmente aceita e também mudada e ampliada pela novidade
da geração seguinte. Como diz o Talmud: "Até
mesmo as inovações que um aluno brilhante ensinará
um dia em frente ao seu mestre já foram dadas no Sinai." Neste
sentido, o escritor latino americano Borges, não-judeu, disse:
"Somente os judeus produziram netos, ao passo que [na tradição
secular ocidental de escrita e textos] as noites de Alexandria, Babilônia,
Cartago e Mênfis nunca conseguiram engendrar um único avô."
A família judia tem enfraquecido, e ao mesmo tempo no mundo em
geral, tantas crianças estão sofrendo, negligenciadas pela
pobreza, doenças, guerra, conflito familiar, abandono ou por não
serem desejadas, devido a problemas ou incapacidade emocional dos pais.
Para aqueles que não têm filhos biológicos, existem
muitas maneiras de ajudar e se tornar "pai ou mãe" daquelas
crianças que estão perdidas. Esta é a Torá
de bondade, e uma outra forma de dar frutos e multiplicar, de aceitar
o pacto, e cumpri-lo. E assim, o nome do famoso memorial e museu do Holocausto
em Jerusalém, Yad VeShem, vem das linhas visionárias do
Profeta Yeshayáhu que consola o povo com uma visão de um
Templo reconstruído que "será chamado uma Casa de Prece
para todas as nações. Assim diz o Eterno: ‘Mantenha
o julgamento e faça justiça, pois Minha salvação
está próxima… Feliz é aquele que faz isso…
que guarda Meu Shabat e não o profana, e se afasta do mal…
Que o eunuco não diga ‘Veja, eu sou uma árvore seca.’
Pois assim diz o Eterno, aos eunucos que guardarem Meu Shabat e escolherem
as coisas que Me agradam, e cumprirem Meu pacto; e a eles Eu darei em
Minha casa de dentro de Meus muros, yad ve’shem, um ‘lugar
e nome’ melhor que filhos e filhas. Eu lhes darei um nome duradouro
que não será cortado" (Yeshayáhu 56).
Embora ninguém, exceto talvez D’us, possa garanti-lo, é
nossa obrigação tentar assegurar, cada qual à sua
própria maneira, que tenhamos netos judeus.
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