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  Teremos netos judeus?
  Por Susan Handelman
 

Nascida em Chicago, é professora da Universidade Bar-Ilan, Israel.
Autora e editora de diversos livros sobre Filosofia Judaica e tradutora do
Tratado do Rebe, Sobre a Essência do Chassidismo.

Alguém escreveu certa vez: "Atualmente um judeu é alguém que tenha netos judeus." Estas palavras são uma ferroada – talvez mais que quaisquer outras em nossos penosos debates sobre a identidade judaica.

Obviamente, pela lei judaica tradicional, um judeu é definido como alguém nascido de mãe judia, ou que tenha se convertido segundo a Halachá, embora a comunidade judaico-americana esteja agora engajada num vigoroso debate também sobre estes parâmetros. A definição acima é apenas metafórica. Incontáveis judeus passam pelo sofrimento de serem biologicamente incapazes de ter filhos; outros escolheram não tê-los. Muitos fizeram casamentos mistos; outros não se casaram, por opção ou destino. E muitos agora preferem abertamente relacionamentos com membros do mesmo sexo. Qualquer que seja o caso, é muito raro, de fato, o judeu que pode estar totalmente certo de que terá netos judeus.

Nos últimos anos, também têm surgido argumentos de que a tradicional ênfase judaica na família está obsoleta, porque exclui grande número de judeus da vida judaica. Alguns também afirmaram que o tradicional núcleo familiar é uma instituição patriarcal repressiva, que ajudou a excluir as mulheres da plena participação na vida institucional judaica. Solteiros, divorciados e homossexuais com freqüência se sentem ofendidos e olhados com condescendência por uma comunidade que os vê como não-realizados, e como adultos incompletos, se não forem casados.


"A Memória" – disse o Báal Shem Tov – "é o segredo da Redenção."

O outro lado argumenta que a família é o alicerce da vida judaica e a garantia da sobrevivência judaica; que a primeira mitsvá é "frutifiquem e se multipliquem", e que os ataques contra a família judaica não emanam das profundezas de um real engajamento, mas de uma ética de auto-gratificação. A cultura política contemporânea em geral também está lutando com outras justificativas de :"valores familiares".

O meu objetivo aqui não é discutir diretamente a opinião da Torá sobre a homossexualidade, ou os desafios do feminismo, ou os problemas dos solteiros na comunidade judaica. Ao contrário, estas questões me despertaram para uma pergunta mais profunda, subjacente: Além dos costumeiros lugares-comuns, por que a família é tão importante no Judaísmo?

Definir um judeu como alguém que tem netos judeus – por mais irônico que pareça – atingiu-me como um conceito profundo. Define um judeu em termos de família – mas não família imediata. Valida não apenas a reprodução biológica, mas também uma continuidade espiritual além do imediato, e além do tempo. O judeu aqui não é definido por quão judeu ele ou ela "se sente", ou quanto dinheiro possa doar, ou nem mesmo por quantas mitvsot consegue cumprir, mas por ter incorporado e transmitido a Torá tão vitalmente que seus filhos optaram por permanecer judeu e estão aptos, por sua vez, a transmitir esta centelha aos próprios filhos. "Três é uma chazaka" – como diz a tradição judaica, e isso significa que quando algo é feito três vezes, tem o elemento da permanência – pode-se confiar na sua estabilidade. Os netos são a terceira geração; eles confirmam o Judaísmo da primeira geração. A transmissão exige uma próxima geração biológica, mas isso não basta; a biologia é moldada pela espiritualidade, o ser é impulsionado na direção do outro, a cegueira do presente rumo à visão do futuro.


O ensino e sua transmissão também é visto como "dar à luz", uma forma não-biológica de ser pai ou mãe.

Isso de maneira alguma tem o objetivo de argumentar a simples sobrevivência ou procriação é que definem o que significa ser judeu. Porém além de todos os motivos óbvios para nossa ênfase contemporânea em "sobrevivência" (a dizimação do Holocausto, a natureza tênue do Estado de Israel, o declínio no número de nascimento e os casamentos mistos), o Judaísmo parece estranhamente obcecado com este tema e com a idéia de família, desde o início. Por quê?

O Livro de Bereshit, por exemplo, é todo sobre famílias, mulheres estéreis, rivalidades entre irmãos, destruições por enchente ou fogo, constantes ameaças ao processo de transmissão e continuidade. A Bíblia narra estes temas em parte para desmistificar a natureza como uma força controladora e para reforçar a idéia, então revolucionária, de que o Único D’us está em controle tanto da natureza quanto da história.

E a história é importante na Torá exatamente porque D’us está apaixonadamente envolvido nela. Assim como D’us, o supremo modelo, está envolvido com as brigas de famílias desde Caim e Abel até os conflitos de nações, assim também os heróis e heroínas bíblicos envolvidos – na verdade, definidos – pelos problemas de suas próprias famílias.

As famílias são a grande cena do conflito espiritual; tanto naquela época quanto agora, elas são o paradigma das conexão íntima e da intensa ambivalência. Ao contrário dos antigos heróis gregos, os heróis bíblicos não conquistam identidade e glória em solitário combate, longe de suas famílias; seus problemas são profundamente domésticos.

Não foi por acaso que o teste crítico de Avraham tenha sido exatamente para sacrificar seu filho… e não ser tentado no deserto ou ter de sacrificar a si mesmo. Pois o filho não era somente seu, e a crise não era apenas pessoal; era coletiva. O chamado para Avraham era para que ele se tornasse uma grande nação; não foi uma preocupação pessoal com uma única pessoa. O pacto não foi feito somente com Avraham, mas com todos os seus descendentes, a família que cresceria até se transformar na nação que Moshê levou ao Sinai. E a revelação no Sinai foi coletiva, a todo um povo, não somente a uns poucos indivíduos de uma elite espiritualmente avançada.

Esta obsessão com a família é remanescente do tribalismo primitivo? O foco sobre a sobrevivência é o resultado das tribulações do exílio? E o que isso tudo tem a ver com nossa necessidade moderna de individualismo e auto-definição?

A família é vital para o Judaísmo, creio, porque é vital para as idéias judaicas sobre D’us, criação, pacto e história. A família biológica nos lembra que nós, como o mundo, somos criados; não somos inevitáveis, necessários, autônomos. Nós somos um efeito da vontade de uma outra pessoa e – no melhor dos casos – do desejo de alguém dar a outro. Nós temos uma história. A criação do mundo, também, é algo a partir do nada, um ato de fé e esperança.


Um rabino amigo meu disse certa vez que ter filhos o fez relacionar-se muito melhor com D’us. "De que maneira?" perguntei. "Porque agora eu entendo o que é criar algo sobre o qual você não tem o menor controle" – respondeu ele.

Recusar-se a deixar nascer a próxima geração é, de certa forma, não continuar a criação de D’us, recusar-se a viver na história, e negar o pacto. Pois o pacto é coletivo e histórico. A Torá é um guia e uma herança a um povo que tece de viajar não apenas no espaço até uma Terra Prometida – mas também no tempo, através das provações de sua história. História – o principal conflito deste mundo, de suas paixões, suas tentações, seus prazeres. "A Torá" – como diz o Livro de Devarim numa passagem famosa – "não está no Céu."

"Toda descida" – dizem os místicos judeus – "é com o propósito de uma subida." A descida da alma para o mundo físico, as andanças das pessoas no decorrer da história, permitem um grande avanço espiritual – e assim o Talmud compara o povo judeu à azeitona: somente quando espremida ela produz o azeite.

Este mundo, os relacionamentos humanos do dia-a-dia, são o palco da ação Divina, tanto para D’us quanto para Israel. O judeu está engajado em santificar o mundo físico e o tempo histórico mundano. É por isso que a memória é importante para os judeus – é a santificação e o elo entre o passado, presente e futuro, No tempo judaico, o passado lembra o futuro. "A Memória" – disse o Báal Shem Tov – "é o segredo da Redenção."

E para colocar isso simplesmente – não há futuro físico, nenhuma história, sem a reprodução física. A família é a unidade que cria a vida, o agente mais poderoso na transmissão de memória pessoal e coletiva. Isso, em parte, explica por que há tamanha ênfase em "geração" na Torá, por que ensinar e aprender são tão valorizados – porque são atos de transmissão para, e recebimento e renovação pela geração seguinte: da herança, do presente.

Este ato de ensino e transmissão também é visto como "dar à luz", uma forma não-biológica de ser pai ou mãe. Como escreveu o grande filósofo e talmudista Maimônides (1135-1204) em seu compêndio da Lei Judaica sobre as Leis do Estudo de Torá:

"Assim como uma pessoa é ordenada a honrar e respeitar seu pai, também está sob a obrigação de honrar e respeitar seu mestre, até mais que ao pai; pois seu pai lhe deu vida neste mundo, ao passo que o professor, que o instrui em sabedoria, assegura para ele uma vida no Mundo Vindouro." E de modo contrário: "Os Sábios disseram: ‘Que a honra de seus discípulos seja tão cara a você como a sua própria’ (Ética dos Pais, 4:12). Uma pessoa deveria se interessar por seus alunos e amá-los, pois eles são seus filhos espirituais que lhe trarão felicidade neste mundo e no Mundo Vindouro."

A ameaça ao pacto é que não haverá ninguém para transmiti-lo no decorrer da história. Talvez este seja um dos famosos midrashim, que quando D’us estava para outorgar a Torá, Ele pediu fiadores que a iriam guardar – e não bastou os judeus adultos terem prometido cumpri-la. Somente quando eles disseram: "Nossos filhos serão nossos fiadores" – D’us concordou em revelá-la.

Assim como os filhos foram dados em garantia antes que tivesse qualquer opção a respeito – o "eu" não é uma criação isolada, autônoma, completamente livre. A família é um pacto. Pois na família, somos continuamente lembrados de fazer, obrigados a fazer, sofremos intromissões, somos alegrados e agradados pelos outros. Estamos em constante diálogo – mesmo que seja furioso. Sim, a pessoa pode se divorciar do cônjuge. Mas mesmo que o afastamento entre o casal seja grave, o vínculo biológico do filho com os pais é indissolúvel. Como Robert Frost declarou: "Lar é o local onde, quando você tem de ir lá, eles precisam levá-lo para dentro."

Assim, os relacionamentos familiares são um microcosmo, um campo de treinamento, um lembrete e uma repetição do relacionamento íntimo do povo judeu com D’us. Por que, afinal, somos chamados os "filhos" de Israel, os "filhos" de D’us? Os profetas, obviamente, exploram as implicações dessas metáforas. No Livro de Yirmiyáhu, D’us pode "divorciar-se" iradamente do povo judeu como de uma esposa infiel, mas então chora sentidamente pela sua redenção. "Voltem, ó filhos extraviados." E a própria Cabalá descreve os vários aspectos do ser místico interior de D’us (as configurações das sefirot) em termos de metáforas familiares, "pai, mãe, filho, filha".

A família pode de fato ser uma instituição repressiva – assim como qualquer relacionamento que seja distorcido – mas eu tentei argumentar aqui que o conceito judaico de família é distinto e integral ao Judaísmo; não se pode reduzi-lo a um arranjo burguês social de "estilo de vida". É profundamente teológico. Um rabino amigo meu disse certa vez que ter filhos o fez relacionar-se muito melhor com D’us. "De que maneira?" perguntei. "Porque agora eu entendo o que é criar algo sobre o qual você não tem o menor controle" – respondeu ele. Isso é irônico e também bastante sábio. Ter filhos – sejam biológicos, adotados ou espirituais – é de fato um aspecto de ser feito à imagem de D’us. Pois a criação de D’us é um ato da livre vontade Divina, que nos dá livre arbítrio, e portanto torna nossas ações na história significativas, e torna a Torá algo nosso, a ser renovado em cada geração.

Um filho é tanto ele mesmo e completamente outro. De maneira semelhante no processo de transmissão, a Torá é a mesma e outra – totalmente aceita e também mudada e ampliada pela novidade da geração seguinte. Como diz o Talmud: "Até mesmo as inovações que um aluno brilhante ensinará um dia em frente ao seu mestre já foram dadas no Sinai." Neste sentido, o escritor latino americano Borges, não-judeu, disse: "Somente os judeus produziram netos, ao passo que [na tradição secular ocidental de escrita e textos] as noites de Alexandria, Babilônia, Cartago e Mênfis nunca conseguiram engendrar um único avô."

A família judia tem enfraquecido, e ao mesmo tempo no mundo em geral, tantas crianças estão sofrendo, negligenciadas pela pobreza, doenças, guerra, conflito familiar, abandono ou por não serem desejadas, devido a problemas ou incapacidade emocional dos pais. Para aqueles que não têm filhos biológicos, existem muitas maneiras de ajudar e se tornar "pai ou mãe" daquelas crianças que estão perdidas. Esta é a Torá de bondade, e uma outra forma de dar frutos e multiplicar, de aceitar o pacto, e cumpri-lo. E assim, o nome do famoso memorial e museu do Holocausto em Jerusalém, Yad VeShem, vem das linhas visionárias do Profeta Yeshayáhu que consola o povo com uma visão de um Templo reconstruído que "será chamado uma Casa de Prece para todas as nações. Assim diz o Eterno: ‘Mantenha o julgamento e faça justiça, pois Minha salvação está próxima… Feliz é aquele que faz isso… que guarda Meu Shabat e não o profana, e se afasta do mal… Que o eunuco não diga ‘Veja, eu sou uma árvore seca.’ Pois assim diz o Eterno, aos eunucos que guardarem Meu Shabat e escolherem as coisas que Me agradam, e cumprirem Meu pacto; e a eles Eu darei em Minha casa de dentro de Meus muros, yad ve’shem, um ‘lugar e nome’ melhor que filhos e filhas. Eu lhes darei um nome duradouro que não será cortado" (Yeshayáhu 56).

Embora ninguém, exceto talvez D’us, possa garanti-lo, é nossa obrigação tentar assegurar, cada qual à sua própria maneira, que tenhamos netos judeus.

       
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