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  Bater na Pedra Era Tão Importante?
 
Por Mendel Kalmenson
 

Uma questão de percepção
O Professor Herman Branover é um físico russo-israelense e educador judaico, conhecido na comunidade científica como pioneiro no campo de magneto-hidrodinâmica. No decorrer dos anos, Branover traduziu para o russo algumas das obras fundamentais do Judaísmo. À certa altura de sua extensa carreira ele decidiu traduzir uma clássica introdução ao Judaísmo do afamado romancista Herman Wouk, intitulada “Este é o Meu D'us”.

Antes de fazê-lo, ele teve oportunidade de visitar o Rebe para uma audiência privada. Um dos assuntos que ele abordou foi seu plano de traduzir o livro para o russo. Ele mostrou ao Rebe uma cópia em inglês do livro, cuja capa é assim:

ESTE É MEU D'US                  HERMAN WOUK

O Rebe engasgou e disse: “Este é meu D'us, Herman Wouk?” Então continuou seriamente: “Com permissão do Sr. Wouk, eu encorajaria você a mudar o título. Há uma possibilidade, embora remota, de que um judeu russo ignorante sobre religião possa confundir o autor pelo tema do livro.”1

Acesso Negado
Não é confortável ver uma querida figura de autoridade implorando algo. É ainda mais difícil testemunhar sua rejeição. Porém, é o que presenciamos no final dos Cinco Livros de Moshê, quando ele implora a D'us para que lhe permita entrar na Terra Santa e seu pedido é negado.
A desolação de Moshê ao ouvir seu destino está bem documentada no Midrash.2

A pergunta tem sido feita mil vezes. Por que é negado a Moshê entrar na Terra Santa? Por que D'us rejeita o único pedido pessoal de Moshê a ser registrado na Bíblia?3

Com devoção, ele levou os israelitas durante seu acidentado passeio de montanha-russa até a nacionalidade. Ele passou o inferno com eles, do Egito ao Sinai, e mesmo assim ele estaria ali para testemunhar o triunfo deles ao chegar no fim da estrada.

Entre Uma Pedra e um Precipício
Um apanhado da história relatada na Parashá Chucat:

Após viajar durante quarenta anos pelo deserto, o povo de Israel chegou a Kadesh no Deserto de Zin, na fronteira da Terra Santa. Lá chegando, o povo descobriu que não havia água em Kadesh, e reclamaram a Moshê: “Se pelo menos tivéssemos morrido,” disseram eles, “quando nossos irmãos morreram diante de D'us! Por que você trouxe a congregação de D'us a este deserto, para morrer aqui, nós e nosso rebanho? Por que nos tirou do Egito – para trazer-nos a este lugar cruel?”

Moshê clamou a D'us, que o instruiu a “pegue o cajado, reúna o povo, você e seu irmão Aharon. Vocês devem falar com a pedra diante dos olhos deles, e ela lhes dará água.” Quando todos estavam reunidos na frente da pedra, Moshê dirigiu-se a eles: “Escutem, seus revoltosos! Traremos água para vocês a partir dessa pedra.” Moshê ergueu a mão e bateu duas vezes na pedra com seu cajado. A água jorrou, e o povo e o rebanho beberam.

Então D'us disse a Moshê e Aharon: “Como vocês não acreditaram em Mim, para santificar-Me perante os olhos dos Filhos de Israel, vocês não levarão esta congregação até a terra que Eu dei a eles.”

Esses são os fatos apresentados. Sua interpretação é menos objetiva. Qual foi exatamente o crime de Moshê? Por que D’us foi tão severo com Seu leal servo por cometer o que parece ser uma pequena ofensa?

Os comentários oferecem várias respostas. Vamos ver uma delas. Nachmânides4 explica que Moshê errou ao dizer para o povo: “Traremos água para vocês a partir dessa pedra.” palavras que parecem sugerir que extrair água de uma rocha é algo que Moshê faz, e não D'us.

Ora, obviamente, isso não é o que Moshê acreditava – afinal, ele era o mais leal servo de D'us, e o maior profeta que já viveu. Mas isso não significa que seus ouvintes não entenderiam mal suas palavras.

Eis o que aconteceu com Moshê. Ele possuía duas qualidades que quando reunidas produziam um efeito colateral que atrapalhava. Ele era um homem de verdade inequívoca e, paradoxalmente, via os habitantes do mundo sob um lugar ideal – como deveriam ser, mas não necessariamente como eram. Assim, às vezes ele tinha dificuldade para entender e antecipar as fraquezas e limitações humanas.

Por exemplo, nesse caso ele simplesmente não imaginou a possibilidade de que suas palavras pudessem ser entendidas como uma declaração de que ele agia independentemente de D'us.
Além disso, por causa da sua suprema integridade, ele se preocupava mais sobre o que precisava ser dito do que como suas palavras pudessem ser recebidas. Sob a perspectiva de Moshê, no momento em que um líder começa a pensar sobre como suas palavras são recebidas pelas pessoas que ele lidera, ele estreita a lacuna entre seu processo de pensamento e o delas, e ao fazê-lo ele comprometeu aquilo que o torna merecedor da liderança – ou seja, a capacidade de ver as coisas sob um local mais elevado e mais objetivo que o homem comum. [Num certo sentido, então, Aharon foi o maior complemento e ponto de equilíbrio de Moshê. Antes de mais nada, ele entendia a fraqueza humana, e trabalhava para ajudar as pessoas no seu atual estado de imperfeição. Em segundo lugar, e talvez por causa disso, ele incorporava o atributo da paz, que com frequência somente é atingido com o comprometimento.]

Entender a natureza da perpectiva purista de Moshê, e sua inocência comprovada sobre os riscos da percepção, esclarece a decisão de D'us de impedir Moshê de levar o povo até a Terra Prometida.

Uma Mudança de Perspectiva
O misticismo judaico vê a jornada do Sinai a Canaã não apenas como uma mudança de cenário, mas como uma mudança de missão e mentalidade.

O estilo de vida dos israelitas no deserto era de natureza espiritual. Seu objetivo era fortalecer a vitalidade espiritual e a constituição dessa nação nascente, encarregada de ser uma luz entre as nações. Todas as suas necessidades físicas eram providas por D'us, para liberá-los de distrações do estudo e prece. Poderia haver um estado de existência mais idílico que esse?

Canaã, porém, seria diferente. Haveria necessidade de lutar guerras, trabalhar a terra e engajar-se no comércio. A festa estaria terminada.

Os israelitas entrariam no “mundo real” em toda a sua feiúra. Portanto, precisavam de um líder que tivesse intimidade com um mundo cheio de defeitos, que conseguisse avaliar as fragilidades da natureza humana. Essa perspectiva lhe permitiria lidar com um povo imperfeito a ponto de enfrentar desafios maiores que nunca, e isso o ajudaria a auxiliar a transição de seu povo para uma nova realidade e um novo papel.

Talvez, então, pudéssemos ver a escolha de palavras de Moshê em Kadesh – seu uso de “nós” em vez de “Ele” – menos como um pecado contra D'us e mais como um indicador de que, devido à sua falta de conhecimento do processo de pensamento do seu povo, não era ele quem deveria liderar o povo para a próxima fase de seu destino.

Em vez de considerar a exclusão de Moshê da Terra como um castigo severo, deveríamos vê-lo como a conclusão lógica que resultou da sua abordagem à liderança.

No deserto, Moshê se deu ao luxo de tentar transformar a maneira de pensar do povo na sua própria; mas em Canaã, onde eles seriam dominados pelos desafios do materialismo, quem quer que os liderasse precisaria aprender intimamente seu processo de pensamento, se quisesse guiá-los efetivamente.

O que há nisso para mim?

Em uma ou outra capacidade, somos todos líderes e comunicadores, influenciando outros pelas nossas palavras e ações, Diz o ditado “Percepção é realidade”. Em outras palavras, na maioria das vezes não é aquilo que dizemos ou fazemos que causa impacto nos outros, mas a maneira de nossas palavras e ações serem entendidas pela nossa plateia. Não basta dizer coisas boas; devemos dizer as coisas certas, ou assegurar que dizemos as coisas boas da maneira certa. No mundo real, aquilo que queremos dizer ou fazer é irrelevante. Podemos ignorar o fato, ou adotá-lo. Podemos subir ao desafio da comunicação, ou desprezar nossa responsabilidade porque ela exige raciocínio e esforço extras.


NOTAS
1. Com a permissão do Sr. Wouk, e baseado em sua sugestão, o título do livro foi mudado para “Lembra do Teu Avô”.
2. Veja Midrash Rabá, Tanchuma, e Yalkut Shimoni ad loc.
3. Devarim 3:23.
4. Ad loc.

     
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