Eu tinha apenas um endereço e um
nome – Rebetsin Devorah Cohen. Seu marido, Rabino Emanuel Cohen,
era considerado pelos rabinos mais notáveis de Israel como sendo
um dos 36 tsadikim ocultos por cujo mérito o mundo inteiro existe.
"Rebetsin Devorah é tão notável quanto ele,"
dissera a minha fonte.
Quando o ônibus deixou a Rodoviária de Jerusalém,
acomodei-me para uma longa viagem, grata por ter tempo para pensar.
Eu estava em Israel há apenas dois meses, estudando minhas origens
judaicas. Tendo passado os últimos 15 anos vivendo num ashram
(retiro religioso) na Índia, e tinha muitos assuntos pendentes
com o Judaísmo.
Meu maior obstáculo, que eu chamava de "assunto nš 1",
era aceitar a ênfase judaica em ter filhos.
Durante 15 anos eu tinha investido num caminho de celibato, tendo aprendido
com o meu Guru que as relações sexuais dissipavam a energia
espiritual e que crianças eram seres barulhentos que tornavam
impossível a meditação. Eu acreditava que crianças
e práticas espirituais eram mutuamente exclusivas, e que se eu
fosse seguir o caminho do Judaísmo, toda a minha espiritualidade
terminaria no cesto de fraldas.
Meu "Assunto Número Dois" era um senso de alienação
espiritual da maioria dos outros judeus que eu conhecera em Israel.
Embora eu estivesse convencida de que a Torá era verdadeira,
sentia que se aplica a "eles", mas não a mim. Eu era
a única exceção.
O Holocausto e Suas Conseqüências
Quando finalmente cheguei à comunidade rural em ruínas
onde morava Rebetsin Devorah, fui até a casa de Nomi, que tinha
arranjado o encontro. Ela contou-me sobre a vida de Rebetsin Devorah.
Nascida na Hungria, ela fora levada para Auschwitz quando tinha 20 anos.
Seus pais e irmãs foram mortos nas câmaras de gás
na primeira noite, mas a jovem Devorah tinha sido mantida viva para
passar pelos experimentos do famoso "anjo da morte", Dr. Mengele.
Logo depois da guerra, ela foi para a Palestina, onde casou-se com Emanuel
Cohen, também um sobrevivente. O casal nunca teve filhos, embora
criasse muitas crianças que foram abandonadas em sua porta, incluindo
um menino com Síndrome de Down que, trinta anos depois, ainda
morava com eles. Viviam em abjeta pobreza, conseguindo um magro sustento
com a criação de galinhas.
"Apesar de tudo aquilo", concluiu Nomi, balançando
a cabeça impressionada, "Rebetsin Devorah está sempre
sorrindo. Eu a vejo quase todo dia, e ela nunca deixa de ter um sorriso.
Não consigo entender o motivo que ela tem para sorrir."
Primeiro Encontro
Na manhã do Shabat, compareci ao serviço na sinagoga simples
da comunidade. De repente a porta se abriu e uma mulher caminhou na
minha direção, sorrindo de orelha a orelha, os braços
esticados. Ela saudou-me com um abraço forte, como uma filha
há muito perdida. Eu soube imediatamente que era Rebetsin Devorah.
Enquanto eu a olhava, ela tomou meu livro novo de preces da minha mão.
Folheou-o até encontrar os aforismos da "Ética dos
Pais", escritos pelos sábios há dois milênios.
Devolvendo-me o livro, ela apontou para uma passagem e perguntou: "Você
já viu esta aqui?"
À medida que eu lia as palavras que ela estava apontando, comecei
a ficar arrepiada. Aqui estava uma resposta à minha Questão
Número 1: "Rabi Shimon ben Yehudah diz… Beleza, força,
riqueza, honra, sabedoria… e filhos – estes convêm
aos justos e convêm ao mundo…"
Enquanto eu permanecia ali apatetada, ela pegou novamente meu livro
de orações e virou algumas páginas. Entregando-me
o livro de volta, ela apontou para outra passagem e perguntou: "Já
leu esta aqui?"
Ali na minha frente estavam as palavras: "Hillel disse: Não
se separe da comunidade." Assunto nš 2, uma severa reprimenda.
Olhei para ela, consternada. A mulher sagrada riu, deu meia volta e
foi embora.
Através da Divisória de Vidro
Naquela tarde, segui as instruções de Nomi para chegar
à casa de Rebetsin Devorah, que parecia uma cabana saída
de alguma história chassídica. Ela saudou-me com um sorriso
encantador e convidou-me a entrar. Logo estávamos batendo papo.
Falamos em hebraico, um idioma que eu mal conhecia, mas de alguma forma
entendi tudo que ela disse.
Ela fez perguntas sobre a minha educação. Contei-lhe sobre
o ashram. Então perguntei a ela sobre suas experiências
durante o Holocausto, um assunto que sempre me interessara. Ela descreveu
como, naquela primeira noite em Auschwitz, uma interna veterana apontou
para a fumaça que saía da chaminé do crematório
e lhe disse: "Aqueles são os seus pais."
Apesar disso, ela afirmou: "Auschwitz não era um mau lugar."
O quê? Eu devia ter entendido mal. Pedi que ela repetisse a declaração.
"Auschwitz não era um mau lugar," repetiu ela claramente.
"Havia um grupo de meninas húngaras, religiosas. Ficávamos
juntas. E todas as mitsvot que podíamos fazer, nós fazíamos.
Por exemplo, uma garota fazia a contagem dos dias, assim sabíamos
quando era Shabat, e evitávamos fazer qualquer trabalho proibido,
sempre que possível. Em Pêssach, não tínhamos
matsá ou vinho, obviamente. Porém uma das moças
tinha memorizado a Hagadá. Ela recitava uma linha, e todas repetiam
depois dela. Assim, conseguimos cumprir a mitsvá de recitar a
Hagadá."
Então fitou-me com seus olhos de um azul claro. "Um lugar
mau é um local onde nos judeus podem cumprir mitsvot, mas não
o fazem. Para você, o ashram foi um mau lugar."
Ela tinha acabado de virar toda a minha realidade de cabeça para
baixo. Um mau lugar nada tinha a ver com coisas más acontecendo
a você. Não importa que os nazistas tivessem assassinado
toda a família dela. Não importa que o Dr. Mengele tivesse
feito experiências com ela, e provavelmente a deixado estéril.
Tudo que realmente importa é aquilo que vem de você. Não
admira ela estar sempre sorrindo, apesar de sua esterilidade, sua pobreza,
apesar das provações de sua vida diária. Ela estava
cumprindo mitsvot. Estava se conectando com D'us. Estava projetando
sua própria luz até na escuridão do inferno.
Eu tinha conhecido muitos mestres sagrados na Índia. Tinha me
sentado aos pés de notáveis swamis e me inclinado perante
Anandamaya-ma, a mulher considerada por milhões de pessoas como
sendo a encarnação da Mãe Divina. Mas sentada naquele
aposento nu com seu telhado de zinco, comendo pepinos e queijo de fazenda
sobre uma mesa quebrada com Rebetsin Devorah, eu me senti como se tivesse
acabado de emergir de uma vida inteira passada através de uma
divisória de vidro. Eu tinha visto tudo ao contrário.
Agora eu estava no alto da toca do coelho, despertara do sonho, apertando
os olhos perante o brilho de um mundo de completa claridade espiritual.
Olhei durante um longo tempo para Rebetsin Devorah. Ela retribuiu meu
olhar, e deu uma risada.
Nota da autora:
Os nomes e locais neste artigo foram mudados para proteger a privacidade
da Rebetsin, uma condição imposta por ela para dar-me
permissão de escrever a seu respeito.
Sobre Sara Yoheved Rigler:
Graduada pela Universidade Brandeis, sua jornada espiritual levou-a
à Índia onde durante 15 anos ela ensinou Filosofia Vedanta
e meditação. Desde 1985, tem praticado o Judaísmo.
Escritora, ela reside na Cidade Velha de Jerusalém com seu marido
e filhos. Seus artigos foram publicados em: Jewish Women Speak about
Jewish Matters, Chicken Soup for the Jewish Soul, e Heaven
on Earth.