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Vamos começar
com duas histórias. Os contos são de alguma forma semelhantes;
em ambos, uma criatura tenta agir como outra, mas fracassa.
Na primeira, é um animal que está tentando ser humano; na
segunda, é um ser humano tentando ser um animal.
Aqui está a primeira história:
Certa vez, durante uma discussão ao jantar no palácio real,
Maimônides, médico pessoal do Sultão Saladino, argumentou
que somente seres humanos podem mudar o próprio caráter,
enquanto os animais não podem.
Um dos conselheiros do sultão, antissemítico, vendo uma
oportunidade para humilhar o médico judeu, propôs uma aposta,
alegando que conseguiria transformar um gato em garçom, ensinando-o
a comportar-se de modo contrário à própria natureza.
Ora, o conselheiro era também um exímio treinador de animais,
e de fato conseguiu treinar o gato a andar sobre as patas traseiras, segurar
uma pequena bandeja com as dianteiras, vestir um uniforme de garçon,
etc.
No dia marcado, Maimônides chegou apenas com uma caixa pequena.
O sultão e sua corte se sentaram. Com grande estardalhaço
o conselheiro abriu a porta e lá vem o gato – vestido, andando
com duas pernas, nas patas da frente uma bandeja com salgadinhos.
O sultão olhou para Maimônides que, ainda sorrindo, abriu
a caixa. Dali saiu correndo um rato. O gato imediatamente derrubou a bandeja,
apoiou-se nas quatro patas e começou a correr atrás do rato
por todo o salão de jantar…
A segunda história, narrada por Rabino Nachman de Breslov:
Houve certa vez um príncipe que enlouqueceu e insistia em dizer
que era um galo. Sentava-se nu debaixo da mesa, cacarejando e comendo
a comida do chão. O rei tentou de tudo para curá-lo, mas
nada funcionava, e ele entrou em desespero. Como este filho louco cresceria
para herdar o reino?
Um sábio, que tinha ouvido falar sobre o problema do rei, chegou
ao palácio e disse que poderia curar o príncipe. O rei prometeu-lhe
uma grande recompensa se fosse bem-sucedido.
O sábio então tirou a roupa e sentou-se debaixo da mesa,
fingindo ser uma galinha. Ali sentado sob a mesa, ele começou a
conhecer o Príncipe Galo.
Então um dia, o homem pediu um par de calças e começou
a vesti-las. O Príncipe Galo objetou, dizendo: “O que está
fazendo, vestindo essas calças? Você é um galo, e
galos não podem usar calças!”
“Quem disse que um galo não pode usar calças?”
respondeu o homem, “Por que eu não poderia ficar quentinho
e confortável, também? Por que apenas os seres humanos têm
todas as coisas boas?”
O Príncipe Galo pensou por um instante. O homem podia estar certo.
O chão debaixo da mesa era muito frio e desconfortável…
Então ele pediu calças, também, e as vestiu.
“No dia seguinte, o homem pediu uma camisa quente, e começou
a vesti-la.
Mais uma vez o Príncipe Galo reclamou: “Como pode fazer issto?
Galos não usam camisas!”
“Quem disse?” respondeu o homem. “Por que eu deveria
tremer de frio só porque sou um galo?”
Mais uma vez o príncipe pensou a respeito, e percebeu que também
sentia frio – portanto vestiu uma camisa. E assim foi com meias,
sapatos, um cinto, um chapéu… Logo o Príncipe Galo
estava falando normalmente, comendo com garfo e faca sobre um prato, sentando-se
corretamente à mesa; em resumo, estava mais uma vez agindo como
um ser humano.
Príncipes ou Gatos?
Quem é homem? Uma velha pergunta...
Ele nasce com uma essência, ou seu núcleo é formado
durante a infância?
Se existe algo inato dentro dele, o que é?
Uma religião proeminente apóia a teoria do pecado original,
alegando que o homem nasceu no pecado. Assim, o homem é pecador
por natureza.
Muitos respeitados pensadores seculares chegaram à mesma conclusão,
embora sob um ponto de vista completamente diferente.
Eles afirmam que em seu íntimo, o homem é impulsionado pelo
egoísmo, ego e luxúria, e nada mais é que uma fera
disfarçada. O bom que há dentro dele é imposto e
externo; resultado da criação, não da natureza.
Alguns são mais severos em suas análises: qualquer bem que
o homem faça, dizem eles, é insincero e falso; o sorriso
e o favor são apenas ferramentas de manipulação e
interesse próprio.
O Judaísmo é bem mais otimista.
Para começar, em um de seus ensinamentos mais espetaculares, a
Bíblia declara que “D'us criou o homem à Sua imagem.”
D'us é inerentemente bom, e assim é o ser que Ele chamou
de homem.
Quanto à pergunta de como o homem chega a pecar se de fato é
tão Divino, o Talmud responde com profundidade: “Uma pessoa
não comete uma transgressão a menos que um espírito
de insensatez entre nela.”1
Longe de ser poético, o Talmud aqui considera nossa pergunta sobre
a formação do homem.
Ao contrário de outros que acreditam que o homem na melhor das
hipóteses é um gato treinável que pode agir como
ser humano desde que os ratos não estejam por perto, o Talmud sugere
que o homem é na essência um ser lindo - um príncipe
real! – que, por causa de “um espírito de insensatez,”
pode às vezes se confundir com um galo.
Assim, no pensamento judaico, é a maldade, não a bondade,
que é estranha ao homem; um produto estrangeiro contrabandeado
lá de fora.
Uma Terceira História
Um professor certa vez reclamou ao Rebe sobre a natureza das pessoas.
“Nos meus encontros tenho notado que as pessoas podem parecer simpáticas
e encantadoras no início. Podem expressar preocupação
por você, demonstrar interesse pela sua vida, e até admitir
abertamente que o amam! Porém se alguém cavar um pouco mais
profundamente que a superfície externa – alguns precisam
ser mais cavados que outros – em seu âmago todos são
exatamente o mesmo: egoístas, arrogantes e interessados apenas
em si próprios. Por que a natureza do homem é assim?”
O Rebe respondeu com uma parábola:
“Quando alguém caminha pela rua, as coisas parecem tão
elegantes e atraentes: árvores floridas, casas bonitas, ruas pavimentadas
e carros dispendiosos. Porém se a pessoa pegar uma pá e
começar a cavar por baixo da superfície, descobre sujeira
e terra; nada parecido com o lindo mas ‘enganador’ mundo acima
do solo.”
A essa altura o professor estava concordando com a cabeça, sem
perceber totalmente aonde isso iria levar.
“Mas se ele não desistisse,” concluiu o Rebe, “e
continuasse cavando cada vez mais, terminaria por encontrar minerais preciosos
e diamantes.”
Então Freud não estava de todo errado.
Ele apenas não cavou fundo o suficiente.
Pois se o tivesse feito, teria descoberto que por debaixo do Id, está
o Yid.2
E embora algumas vezes possamos sucumbir à nossa inclinação
animalesca, sempre podemos ser novamente humanizados, como o príncipe
debaixo da mesa, e como diamantes cobertos de terra, nossa essência
nunca muda.3
Notas: 1 – Sotah 3a.
A base para esta exegese talmúdica é o versículo bíblico
descrevendo a sotah, uma mulher suspeita de adultério (Bamidbar 5:12):
“Qualquer homem, se sua mulher se desgarrar (“sisteh”
em hebraico)…” Em vez de usar a palavra titeh, mais linguisticamente
correta, a Torá usa sisteh, do radical shetut, que significa insensatez,
para ensinar que alguém peca somente devido a um espírito
de insensatez. Para uma explicação a respeito da conexão
específica entre a sotah e este ensinamento que se aplica a todo
pecado, veja a palestra do Rebe (Licutê Siichot vol. 2, pág.
311) que inspirou este ensaio.
2 – É interessante que quando as palavras “Yid”
e “Id” são combinadas, elas formam yidid que, em hebraico,
significa companheiro ou amigo. Talvez pudéssemos dizer que isso
sugere que as duas não são mutuamente exclusivas, mas podem
e devem coexistir, embora em níveis diferentes; o Yid mais profundo
e mais importante que o Id.
3 – Inspirado na palestra do Rebe, publicada em Licutê Siichot,
vol. 2 pág. 311 |