História ou Memória?  
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  Por Mendel Kalmenson
 

Sabe-se que não há uma palavra em hebraico para história.
(O moderno equivalente hebraico para “historia” é uma palavra tirada do inglês, “history”, que foi pinçada do grego “historia”. Tudo que vai termina por voltar…)

A falta de uma palavra tão vital como “história” para qualquer nação é chocante. Talvez seja porque não existe isso de história no Judaísmo.

Zikaron (memória), no entanto, um primo distante de história, aparece com destaque na linguagem e pensamento bíblicos. Vai muito além da semântica, indo direto no âmago da percepção judaica do passado.

Veja, no inglês “history” pode ser visualizado como “his-story” a história dele, não a minha. As primeiras duas letras de “memory”, porém, referem-se a mim (“me”, em inglês). Sem mim não há memória. A memória é parte de mim, e história – separada de mim. Veja de maneira diferente: A História é feita de datos objetivos, e a memória de experiência subjetiva.

Como você deve ter adivinhado, o Judaísmo está menos interessado em fatos objetivos que em experiências emocionantes. É por este motivo que grande parte da tradição judaica e seu ritual se apoie em reenceneção. Não apenas comemoramos, nós celebramos. Não apenas relatamos a história de outra pessoa, nós revivemos a nossa.

Alguns exemplos:
Grande parte do ritual do Seder de Pêssach visa a estimular sensações de escravidão e amargura (ex., a água salgada, ervas amargas, o pão do pobre –matsá – e assim por diante), bem como realeza e liberdade (quatro copos de vinho, recostar-se em almofadas e outros).

De fato, em algumas comunidades judaicas, a sétima noite de Pêssach (a noite em que o mar se abriu para os judeus) encontra muitos que caminham em caçambas de água para recriar aquele evento.

Em Shavuot ficamos acordados a noite inteira em antecipação à Outorga da Torá pela manhã, e as crianças são levadas à sinagoga para escutarem a leitura dos Dez Mandamentos.

Na verdade, o Judaísmo ensina que, em alma, estivemos todos presentes no Sinai.1 Cada um de nós encontrou D'us pessoalmente. Por isso, D'us não é apenas o D'us de nossos ancestrais, Ele é nosso D'us. Não é apenas o D'us de quem ouvimos falar, mas o D'us de quem ouvimos a voz.

A Divina revelação no Sinai portanto se distingue de qualquer outra revelação descrita em outras tradições religiosas. Importante para outras religiões é a crença de que D'us jamais Se mostra às massas, a uma comunidade de pessoas comuns. Ele fala somente com o Profeta, que é merecedor da comunhão Divina. Cabe ao rebanho confiar implicitamente na narrativa da revelação feita pelo seu pastor. Não é assim no Judaísmo, que afirma que, de fato, a maior revelação Divina de todos os tempos foi acessível tanto ao servo quanto a Moshê.

Além disso, até quando Ele falava com uma nação de milhões, D'us se dirigia a cada um pessoalmente. Como ensinam nossos Sábios, em Suas palavras iniciais no Sinai, “Eu sou o Eterno teu D'us”, D'us escolheu usar a forma singular de “teu” (elokecha) – em vez da forma plural, “vosso” (elokeichem).

Este foi um dos maiores presentes que D'us concedeu ao nosso povo, incluir todos nós na aparição no Sinai, pois isso transformou o evento mais importante de nossa nação numa lembrança viva, em oposição a uma lição sem vida na história.

Seguindo para o Nove de Av, o dia em que o Templo Sagrado foi destruído há milhares de anos e um dia nacional de luto – seus costumes incluem comer ovos mergulhados em cinzas (pouco antes do jejum), sentando em bancos baixos, não usar sapatos de couro, jejuar e lamentar como se tivesse acontecido ontem.

Chega Sucot, e nos mudamos para cabanas durante uma semana para relembrar as tendas em que vivemos durante nossa jornada pelo deserto. Como uma máquina do tempo figurativa, a sucá nos transporta àquela viagem distante e formativa. E a lista continua.

O importante é que lembrar é grande parte da nossa tradição.

A discussão a seguir procura esclarecer até que ponto é grande.

O Final

“Hoje eu tenho cento e vinte anos de idade,” começa a última homilia de Moshê. “Não consigo mais liderar vocês…”

O fim está próximo, ou está aqui.

“Seja forte e corajoso… Não tenha medo… pois D'us está indo com você…”2

Essas frases comoventes, e a época em que foram ditas, ajuda a montar o cenário e a entender o estado de espírito do último discurso feito por um líder altruísta à sua (não tão altruísta) congregação.

E essas são as palavras com as quais ele os deixa:

“Ao final de sete anos… durante a festa no dia de Sucot, quando todo Israel vier perante D'us, no local que Ele escolherá, o rei deve ler a Torá perante todos de Israel. Reúna o povo, homens, mulheres e crianças, e os convertidos em suas cidades, para que escutem e para que aprendam e eles deverão temer a D'us…”3

As declarações finais de Moshê ao seu povo delinearam a mitsvá de Hakhel, o mandamento obrigando todos os judeus a se reunirem a cada sete anos no Templo Sagrado para ouvirem trechos da Torá sendo lidos pelo rei judeu.

Então, após Moshê falar com o povo, D'us tem uma conversa final 4 com ele:
“Em breve você vai se deitar com seus pais. Esta nação se erguerá e desejará seguir os deuses do povo da terra à qual estão indo. Eles Me abandonarão e violarão o pacto que Eu fiz com eles…
“Agora, escrevam para si mesmos essa canção…”

Qual canção, nos perguntamos, e como uma canção poderia parar os judeus de se assimilarem?

Maimônides explica:
“É um mandamento positivo para todo homem judeu escrever um Rolo de Torá por si mesmo, como declara o versículo: ‘Agora escrevam para si mesmos essa canção,’ o que significa dizer: ‘escrevam para si mesmos uma Torá que contém essa canção…’”5

Essa mitsvá, para cada indivíduo escrever seu próprio Rolo de Torá, é a 613ª mitsvá, a final, a ser registrada na Torá. É o tema da última conversa entre D'us e Moshê que dizia respeito ao povo. Deve de alguma forma conter uma receita para a sobrevivência judaica, um antídoto para a assimilação.

Mas o que poderia ser?

A única preocupação na mente de Moshê naquele dia, e mais tarde ecoada por D'us na conversa deles, era o futuro dessa frágil nação – um futuro que se tornaria menos róseo com o tempo, oferecendo terrível perseguição bem como progressivos desafios religiosos.

A solução sugerida tanto por D'us quanto por Moshê foi a mesma:
Se o Judaísmo fosse ensinado como uma experiência viva, teria uma vida duradoura; se fosse ensinado como um assunto morto, porém, ficaria – D'us não o permita – sujeito à morte.

Tanto a mitsvá de Hakhel quanto a de escrever um Rolo de Torá foram estabelecidas para transformar o prospecto anterior em realidade.

Hakhel era a reencenação do Sinai. Eis como Maimônides o descreve:
“Eles preparariam seus corações e alertariam seus ouvidos para ouvir com temor e reverência e com trêmulo júbilo, como o dia [em que a Torá] foi outorgada no Sinai… como se a Torá estivesse sendo ordenada a eles agora, e eles a estivessem ouvindo da boca do Todo Poderoso…”6

Isso poderia explicar por que de todos os mandamentos bíblicos, Hakhel se destaca sozinho em obrigar (pais a levar seus) filhos,7 incluindo aqueles pequenos demais para andar e sem capacidade de compreender, sentir ou avaliar o que estava ocorrendo à volta deles?

Porém a experiência de Hakhel não era apenas sobre a mente, era sobre a alma; desencadeou o subconsciente, não apenas o consciente. Assim, as crianças, que possuem alma tanto quanto os adultos, estavam presentes. Em algum lugar da sua psique eles revivenciaram o Sinai.

Isso explica também por que até os sábios mais notáveis estavam presentes quando o rei leu a Torá, embora eles fossem fluentes naquilo que seria lido. Pois essa não era uma palestra ou um simples curso, era uma viagem.

Por uma razão semelhante não foi o erudito mais proficiente que leu a Torá, mas o rei, “pois o rei é um agente para fazer as palavras de D'us serem ouvidas”.8

Uma classe é mais bem ensinada por um professor experiente. A reverência do Sinai é mais bem reencenada através da palavra de um rei poderoso.

Em resumo, Hakhel foi a reencenação comunal do Sinai; tornou as coisas reais novamente.

Mas enquanto aquilo funcionou em Jerusalém, no Templo Sagrado, uma vez a cada sete anos, como os outros seis anos, fora de Jerusalém, e o dia em que nossa nação estivesse sem um Templo, poderiam conter Judaísmo vivo?

Por este motivo D'us nos deu a mitsvá de escrever um Rolo de Torá, para ser escrito e guardado dentro da casa da pessoa, onde quer que viva e cujo propósito é recriar o Divino encontro pessoal que cada um de nós vivenciou no Sinai.

Maimônides não poderia ter explicado melhor quando disse que quando “uma pessoa escreve uma Torá com sua própria mão, é como se a tivesse recebido no Monte Sinai…”

Assim, a frase de Moshê não poderia ter sido mais apropriada e útil naquele momento histórico. Tanto as mitsvot que ele transmitiu quanto as ideias que elas representavam foram suas últimas e melhores palavras de conselho a um povo que enfrentava grandes incertezas.

Faça mais que estudar Torá e cumprir mitsvot. Viva-as, ingira-as e as digira, vivencie-as – e elas continuarão vivas.9

O que me espera?
Estamos perdendo números, e depressa.

Atualmente, 72% dos judeus americanos (não-observantes) celebram casamentos mistos.10 A maioria desses infelizmente jamais recebeu uma educação judaica, Este é o problema número um.

Alguns deles receberam, porém, o que é o problema número dois.

Se quisermos nos comunicar com os jovens de hoje, devemos mudar nosso foco educacional do conhecimento judaico para a experiência judaica – o Judaísmo como estilo de vida e não (apenas) um tópico para discutir ou um papel.

Quantas vezes tenho ouvido alguém que recentemente vivenciou um Shabat, uma festa judaica, ou um estudo apaixonado dizer: “Gosto disso, isto me toca, não posso viver sem isto!”

Talvez seja porque pela primeira vez na vida eles tenham se engajado no Judaísmo vivo, não no Judaísmo de laboratório.

Ou talvez tenha sido a primeira vez que eles sentiram que o Judaísmo não era a história de outra pessoa, mas a sua própria.


Notas:

1 – Veja Pirkei de Rabi Elazar cap. 41; Midrash Rabbá, Shemot 28:6.

2 – Devarim 31:2, 6.

3 – Ibid, 31:10-12. Segundo o comentarista bíblico Abarbanel, o versículo 31:30 descreve um discurso feito por Moshê aos representantes de Israel, mas o povo não estava presente.

4 – Ibid. 31:16-19. Suas conversas depois (ex. 32:48 e além) eram logísticas e continham algumas declarações finais, mas não eram pertinentes à sua liderança do povo.

5 – Leis de um Rolo de Torá 7:1.

6 – Leis das Oferendas das Festas 3:6.

7 – Veja Talmud Kidushin 34 b: “Crianças são obrigadas na mitsvá de Hakhel”.

8 – Leis das Oferendas das Festas 3:6.

9 – Baseado nos ensinamentos do Rebe, registrado em Licutê Sichot, vol. 34.

10 –Veja mais em http://www.simpletoremember.com/articles/a/intermarriagewhynot/


Rabino Mendel viajou pela Europa, Ásia e América do Sul, contactando judeus nas áreas mais remotas. Ele agora reside com sua esposa Chana e seus filhos no Brooklyn. NY, onde atua como Rabino no Besht Center, um centro espiritual para jovens profissionais. Mendel contribui regularmente com artigos para Chabad.org, e a maioria deles aparece em sua coluna de Parashá: “What the Rebbe Taught Me” (O Que o Rebe me Ensinou).

 

 

 
   
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