A Gênesis da Recuperação
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  Por Yosef Y. Jacobson
 

D'us realmente teve de destruir o mundo?
Uma das mais adoráveis histórias narradas pelo mestre chassídico Rabi Nachman de Breslav é mais ou menos assim:

Um rei foi informado pelo seu primeiro ministro que tinha havido uma praga nas plantações naquele ano. As plantas foram tão afetadas que quem comesse o cereal se tornaria louco.

“Mas,” disse o ministro, “não há necessidade de nos preocuparmos. Reservei bastante cereal da colheita do ano passado para que nós dois duremos até a colheita do próximo ano.”

O rei balançou a cabeça. “Não,” disse ele. “não me permitirei receber quaisquer privilégios a mais que os meus súditos.

“Nós dois comeremos o mesmo cereal,” continuou o rei, “e ambos ficaremos loucos com o restante da população. Mas eis aqui o que devemos fazer. Você e eu marcaremos a testa com uma tinta indelével, portanto quando ficarmos loucos, olharei para você e você olhará para mim e saberemos que somos insanos.”

O caminho para a cura
Algum tempo atrás encontrei uma mulher. Ela era particularmente bondosa e compassiva, mas notei que jamais sorria; uma palidez e uma sombra constante pareciam dominar sua face o tempo todo.

Quando lhe perguntei sobre isso, ela relatou-me que quando tinha três anos, seu pai se tornara um alcoólatra. Ele chegava em casa bêbado todas as noites e batia a cabeça dela contra a parede de tijolos da cozinha.

A mãe ficava por perto em silêncio, cobrindo os olhos com as mãos. “Quando papai terminar de bater,” disse-me a mulher, “mamãe vai dizer a ele: ‘Você precisa bater com tanta força?’”

A recuperação é um milagre. Quando enfrenta grave abuso mental e físico, uma pessoa recuperar-se e ter de volta a inocência perdida e o entusiasmo pela vida nada mais é do que um milagre.

A capacidade de realizarmos este milagre em nossa vida foi costurada no tecido da nossa existência como resultado do Dilúvio descrito na porção dessa semana da Torá, que ocorreu, segundo a tradição judaica, no ano 1656 após a Criação (2105 AEC).

Por que o Dilúvio?
“E D'us disse a Nôach: O fim de toda a carne chegou perante Mim, pois a terra está repleta de violência; veja, Eu os destruirei.” A partir dali, uma chuva torrencial de quarenta dias desceu do céu e inundou a terra, dando um fim a quase todos os seus habitantes.

Crescendo numa yeshiva e estudando essa história todos os anos, jamais pude entender como D'us pôde realmente varrer um mundo inteiro por causa dos seus erros. Até o próprio D'us aparentemente chegou à mesma conclusão após o Dilúvio. A Torá relata como após o Dilúvio D'us prometeu que “Jamais amaldiçoarei novamente a terra por causa do homem; nem destruirei todo ser vivo, como fiz. Todos os dias da terra, as estações para semear e colher, frio e calor, verão e inverno, dia e noite, jamais cessarão.”

O que mudou? E também, por que de todas as maneiras de destruir a civilização, D'us escolheu o Dilúvio?

As obras do vício
O Rebe de Lubavitch assim explicou a trágica história do Dilúvio: O mundo deveria ser um lugar espiritual e Divino, e o homem deveria ser uma criatura sagrada e espiritual. Este é o supremo objetivo e destino. Porém durante o milênio precedendo o Dilúvio, a raça humana definiu-se exclusivamente como uma raça criminosa e bestial. O homem corrompeu a si mesmo e ao seu ambiente de maneira tão grave que a cura não era mais possível. O mundo transformou-se num inferno sem redenção. A destruição era inevitável, uma consequência natural de dez séculos de abuso e mal.

Não é essa a consequência de todo vício? Após décadas fritando seu cérebro com álcool, drogas ou outras substâncias ou comportamentos destrutivos, você finalmente consegue matar o último vestígio de sua alma e de sua racionalidade. A essa altura, a cura não mais é possível. Sua mente perde a última fração de controle sobre sua vida e você apenas se assiste destruir-se e morrer.

Durante a época de Nôach, o homem e seu mundo ainda não possuíam o potencial para a reabilitação e auto-renovação. Por quê? Porque a espiritualidade e a santidade acessíveis ao mundo durante a era pré-Dilúvio foi um presente do Alto e não intrínseca à própria química da humanidade. Como um estudante que assimila todos os profundos ensinamentos de seu mestre, mas carece da habilidade de desenvolver um pensamento original, o homem era um recipiente da luz, mas não possuía a luz. Portanto, enquanto o homem foi um leal pupilo de D'us, ele permaneceu conectado à fonte da vida. Uma vez que o homem rejeitou D'us, sua existência tornou-se inválida e sem propósito.

As águas do Dilúvio, descritas pela Cabalá como “um micvê cósmico”,” não somente destruíram um mundo impossível de ser salvo; também o purificaram, deixando atrás de si um novo mundo com uma nova natureza. As águas poderosas que vieram do céu impregnaram as verdades da espiritualidade e Divndade dentro do próprio tecido da terra. Como um aluno que tinha sido treinado pelo seu mentor a pensar por si mesmo, a humanidade na era pós-Dilúvio absorveu a bondade e a harmonia de seu Criador dentro da própria estrutura. A partir de então, mesmo que o homem se alienasse inteiramente de sua fonte Divina, ele sempre poderia recriar-se através da luz gravada nas profundezas de seu ser. O Dilúvio concedeu ao nosso mundo o dom e o milagre da recuperação. Mesmo em face ao mais horrível abuso, retemos dentro de nós um espaço sagrado, uma inocência intocável, a partir da qual sempre podemos experimentar a maravilha do renascimento. Embora a insanidade – em todas as suas formas – possa invadir nossa vida, nossa alma preserva a lembrança de um mundo são, um mundo repleto de inocência, amor e segurança interior.

 

 

 
   
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