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D'us realmente teve
de destruir o mundo?
Uma das mais adoráveis histórias narradas pelo mestre chassídico
Rabi Nachman de Breslav é mais ou menos assim:
Um rei foi informado pelo seu primeiro ministro que tinha havido uma praga
nas plantações naquele ano. As plantas foram tão
afetadas que quem comesse o cereal se tornaria louco.
“Mas,” disse o ministro, “não há necessidade
de nos preocuparmos. Reservei bastante cereal da colheita do ano passado
para que nós dois duremos até a colheita do próximo
ano.”
O rei balançou a cabeça. “Não,” disse
ele. “não me permitirei receber quaisquer privilégios
a mais que os meus súditos.
“Nós dois comeremos o mesmo cereal,” continuou o rei,
“e ambos ficaremos loucos com o restante da população.
Mas eis aqui o que devemos fazer. Você e eu marcaremos a testa com
uma tinta indelével, portanto quando ficarmos loucos, olharei para
você e você olhará para mim e saberemos que somos insanos.”
O caminho para a cura
Algum tempo atrás encontrei uma mulher. Ela era particularmente
bondosa e compassiva, mas notei que jamais sorria; uma palidez e uma sombra
constante pareciam dominar sua face o tempo todo.
Quando lhe perguntei sobre isso, ela relatou-me que quando tinha três
anos, seu pai se tornara um alcoólatra. Ele chegava em casa bêbado
todas as noites e batia a cabeça dela contra a parede de tijolos
da cozinha.
A mãe ficava por perto em silêncio, cobrindo os olhos com
as mãos. “Quando papai terminar de bater,” disse-me
a mulher, “mamãe vai dizer a ele: ‘Você precisa
bater com tanta força?’”
A recuperação é um milagre. Quando enfrenta grave
abuso mental e físico, uma pessoa recuperar-se e ter de volta a
inocência perdida e o entusiasmo pela vida nada mais é do
que um milagre.
A capacidade de realizarmos este milagre em nossa vida foi costurada no
tecido da nossa existência como resultado do Dilúvio descrito
na porção dessa semana da Torá, que ocorreu, segundo
a tradição judaica, no ano 1656 após a Criação
(2105 AEC).
Por que o Dilúvio?
“E D'us disse a Nôach: O fim de toda a carne chegou perante
Mim, pois a terra está repleta de violência; veja, Eu os
destruirei.” A partir dali, uma chuva torrencial de quarenta dias
desceu do céu e inundou a terra, dando um fim a quase todos os
seus habitantes.
Crescendo numa yeshiva e estudando essa história todos os anos,
jamais pude entender como D'us pôde realmente varrer um mundo inteiro
por causa dos seus erros. Até o próprio D'us aparentemente
chegou à mesma conclusão após o Dilúvio. A
Torá relata como após o Dilúvio D'us prometeu que
“Jamais amaldiçoarei novamente a terra por causa do homem;
nem destruirei todo ser vivo, como fiz. Todos os dias da terra, as estações
para semear e colher, frio e calor, verão e inverno, dia e noite,
jamais cessarão.”
O que mudou? E também, por que de todas as maneiras de destruir
a civilização, D'us escolheu o Dilúvio?
As obras do vício
O Rebe de Lubavitch assim explicou a trágica história do
Dilúvio: O mundo deveria ser um lugar espiritual e Divino, e o
homem deveria ser uma criatura sagrada e espiritual. Este é o supremo
objetivo e destino. Porém durante o milênio precedendo o
Dilúvio, a raça humana definiu-se exclusivamente como uma
raça criminosa e bestial. O homem corrompeu a si mesmo e ao seu
ambiente de maneira tão grave que a cura não era mais possível.
O mundo transformou-se num inferno sem redenção. A destruição
era inevitável, uma consequência natural de dez séculos
de abuso e mal.
Não é essa a consequência de todo vício? Após
décadas fritando seu cérebro com álcool, drogas ou
outras substâncias ou comportamentos destrutivos, você finalmente
consegue matar o último vestígio de sua alma e de sua racionalidade.
A essa altura, a cura não mais é possível. Sua mente
perde a última fração de controle sobre sua vida
e você apenas se assiste destruir-se e morrer.
Durante a época de Nôach, o homem e seu mundo ainda não
possuíam o potencial para a reabilitação e auto-renovação.
Por quê? Porque a espiritualidade e a santidade acessíveis
ao mundo durante a era pré-Dilúvio foi um presente do Alto
e não intrínseca à própria química
da humanidade. Como um estudante que assimila todos os profundos ensinamentos
de seu mestre, mas carece da habilidade de desenvolver um pensamento original,
o homem era um recipiente da luz, mas não possuía a luz.
Portanto, enquanto o homem foi um leal pupilo de D'us, ele permaneceu
conectado à fonte da vida. Uma vez que o homem rejeitou D'us, sua
existência tornou-se inválida e sem propósito.
As águas do Dilúvio, descritas pela Cabalá como “um
micvê cósmico”,” não somente destruíram
um mundo impossível de ser salvo; também o purificaram,
deixando atrás de si um novo mundo com uma nova natureza. As águas
poderosas que vieram do céu impregnaram as verdades da espiritualidade
e Divndade dentro do próprio tecido da terra. Como um aluno que
tinha sido treinado pelo seu mentor a pensar por si mesmo, a humanidade
na era pós-Dilúvio absorveu a bondade e a harmonia de seu
Criador dentro da própria estrutura. A partir de então,
mesmo que o homem se alienasse inteiramente de sua fonte Divina, ele sempre
poderia recriar-se através da luz gravada nas profundezas de seu
ser. O Dilúvio concedeu ao nosso mundo o dom e o milagre da recuperação.
Mesmo em face ao mais horrível abuso, retemos dentro de nós
um espaço sagrado, uma inocência intocável, a partir
da qual sempre podemos experimentar a maravilha do renascimento. Embora
a insanidade – em todas as suas formas – possa invadir nossa
vida, nossa alma preserva a lembrança de um mundo são, um
mundo repleto de inocência, amor e segurança interior.
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