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  O Fruto De Uma Terra Árida
 
Por Eli Touger
 

O Que Diz a Paisagem
Na arte da comunicação, a escolha do cenário é fundamental. De fato, o próprio cenário transmite uma parte importante da mensagem, pois ela não deve ser separada de seu conteúdo. A escolha de um cenário apropriado não facilita somente a compreensão de um conceito, mas pode apontar para - e até mesmo iniciar - sua aplicação.

Conceitos semelhantes se aplicam em relação à escolha de D'us por um local para a entrega da Torá. Nossos Sábios perguntam1: “Por que a Torá foi dada no deserto?”. D'us não foi compelido a dar a Torá em nenhum local específico. Portanto, Sua escolha do local pode nos oferecer alguns ensinamentos.

Esta importância, além disso, é relevante não só para os judeus que receberam a Torá no Sinai, mas para o homem em cada geração. Nós louvamos a D'us como “Aquele que dá a Torá”, usado no presente2. Os ensinamentos que podemos derivar do cenário da entrega da Torá nos mostram como abordá-La em todos os momentos e em todos os lugares.

Onde Não Existe Dono
A primeira das explicações dadas por nossos Sábios em resposta à pergunta acima é a de que o deserto não pertence a nenhum indivíduo. O mesmo vale para a Torá. Ela não é de posse exclusiva de nenhum indivíduo, tribo ou tipo de personalidade em particular. Ao contrário, “A coroa da Torá é posta de lado, esperando, e pronta para todo judeu... Quem quiser, pode vir e pegá-La”3.

A natureza sem dono do deserto também oferece uma chave para o entendimento de como uma pessoa pode aplicar a lição acima e tomar posse da Torá. Como nossos Sábios continuam, uma pessoa deve “fazer de si mesma como um deserto, abandonando todas as preocupações”; isto é, ela deve remover as restrições que impedem seu comprometimento com a Torá.

A Torá é a vontade de D'us e Sua sabedoria, e é, assim, tão infinita e ilimitada quanto Ele próprio. Portanto, a abordagem à Torá requer que uma pessoa supere a si mesma e aceite uma estrutura diferente de entendimento4.

Isto foi refletido no juramento de nossos ancestrais: Nassê vê nishmá, “Nós faremos e entenderemos”5. A ordem das promessas é importante. Em vez de primeiro ouvirem as ordens de D'us e então decidirem aceitá-las ou não, eles prometeram obedecer-Lo independentemente do que foi exigido6. Em vez de ter seu compromisso moldado por sua compreensão, eles prometeram ter seu entendimento moldado por seu compromisso7.

Uma Declaração de Dependência
Quando alguém assume tal compromisso, D'us molda seu ambiente de forma que o compromisso possa ser expresso8. Isto também é aludido pela entrega da Torá no deserto, como nossos Sábios dizem: “Assim como o deserto não é semeado nem cultivado, também quando alguém aceita o jugo da Torá, o jugo das preocupações mundanas é removido dele”. No deserto, nossos ancestrais tinham de depender de D'us para cada elemento de sua existência. Não havia recursos naturais dos quais pudessem depender.

Apesar disso, isto não foi uma causa de ansiedade ou preocupação. Ao contrário, apesar da aridez e desolação do deserto, nossos ancestrais entraram nele com total confiança, como o profeta declara9: “Eu lembrei por ti a bondade de tua juventude, o amor de teus dias de núpcias, por tu teres Me seguido no deserto, em uma terra não cultivada”.

E D'us respondeu carinhosamente. Seu alimento, sua água, até mesmo suas vestimentas, foram todas dadas aos judeus de forma milagrosa. D'us proveu tudo do que eles precisavam, dando a eles a oportunidade de devotarem a si mesmos somente à Torá. Tão perfeito foi o cenário no qual nossos ancestrais viveram que nossos Sábios declararam: “A Torá foi dada... somente àqueles que partilharam o manna”10.

Esta não é meramente uma história sobre o passado. Mesmo quando nós parecemos ter meios naturais de produzir nosso próprio sustento, a verdade é que a própria natureza é uma série de milagres. Por causa de sua constante recorrência, nós não vemos mais esses milagres como especiais11. Mas isto não deve obscurecer a verdade de que nós devemos perceber que, em todos os momentos, dependemos de D'us.

Essa consciência deve motivar uma ordenação de prioridades. Em vez de dar preferência às nossas preocupações materiais, devemos dar preferência à Torá. Quando assim fazemos, podemos confiar que D'us proverá nossas necessidades como Ele proveu para nossos ancestrais. Mesmo quando -- como nossos ancestrais no deserto -- nós não vemos nenhum meio natural de prover nosso sustento, devemos insistir em nosso comprometimento com a Torá e contar com Ele.

Para Que O Deserto Floresça

A aridez de um deserto pode também servir como uma analogia para o estado espiritual de uma pessoa. Apesar de ela sentir-se vazia e desolada, e talvez com bons motivos, pois ela tem vivido em um deserto espiritual, não há necessidade de desespero. D'us desceu ao deserto para dar ao homem Sua mais preciosa posse, a Torá. E o mesmo é verdade hoje em dia: independentemente do nível espiritual da pessoa, D'us oferece a ela a oportunidade de estabelecer uma conexão por intermédio da Torá.

Encorajando-nos a imitar essa iniciativa, nossos Sábios12 nos compelem a “sermos alunos de Aharão... amando as criaturas e aproximando-as da Torá”. No Tanya13, o Alter Rebbe explica que esta afirmação ensina que nós devemos amar a todo judeu, mesmo aquele que é tão árido como um deserto e cuja única característica de redenção é o fato de ele ser uma criação de D'us.

Nossos Sábios contam que durante os 40 anos em que o Povo Judeu vagou pelo deserto, eles foram capazes de o transformar em “terra habitada” a ponto de as árvores florescerem e frutificarem. Nosso estudo de Torá pode produzir um efeito semelhante. Aspectos de nós mesmos e de outros que parecem áridos podem se tornar produtivos através da influência da Torá.

A Florescência Final

A Parashá “no deserto”, é sempre lida antes da festa de Shavuot14. As festas judaicas não apenas comemoram os eventos do passado, mas também nos provêem com uma oportunidade de revivê-las15. Para reviver a experiência do Sinai, nós primeiro precisamos atravessar o deserto e suas lições pelo menos no sentido espiritual. Esta é a mensagem comunicada por nossa leitura da Torá.

Estas lições são particularmente relevantes hoje em dia, pois nossa geração está aguardando uma nova fase na revelação da Torá, a era na qual “novas [dimensões da] Torá emergirão de Mim”16.

A entrega da Torá nunca será repetida17, como escreve o Rambam18 em relação à Era da Redenção: “A essência da questão é: esta Torá, com suas leis e estatutos, é eterna. Nós não podemos nem acrescentar a elas nem delas subtrair”. Mesmo assim, nossos Sábios disseram 19 que os ensinamentos da Torá na era atual não são “nada comparados aos ensinamentos do Mashiach”. Pois, naquela era, as dimensões Divinas da Torá serão reveladas abertamente, e todos serão capazes de apreciar sua mensagem espiritual.

Assim como os judeus avidamente se prepararam para as revelações no Monte Sinai, ansiosamente contando os dias até quando receberiam a Torá20, nós também devemos nos preparar para a revelação dos ensinamentos de Mashiach com entusiasmo e alegria.

E, então, com a chegada da Redenção, “os pastos do deserto florescerão e a árvore dará frutos”21. Que isto possa acontecer brevemente.


Notas
1. Bamidbar Rabbah 19:26.
2. O texto da terceira bênção recitada antes do estudo da Torá (Siddur Tehillat Hashem, p. 10) e as bênçãos recitadas antes e depois da leitura comunal da Torá (loc. cit., p. 70).
3. Sifri, comentando sobre Bamidbar 18:20.
4. Neste contexto, Likkutei Torah Bamidbar 4c usa a aridez de um deserto como uma analogia positiva, interpretando-a como um reflexo de um nível de revelação tão grande a ser confinada dentro da existência comum.
5. Shemot 24:7.
6. Ver Shabbos 88a.
7. Assim, em vez do homem interpretar a Torá de acordo com suas limitações mortais, esta abordagem estabelece uma ligação entre homem e D'us enquanto Ele está em Seu infinito.
8. Ver Rambam, Mishnê Tora, Hilchos Teshuvá 9:1.
9. Yirmiyahu 2:2.
10. Mechilta, comentando sobre Shemot 16:4.
11. Chacham Tzvi, Responsa 18; ver também Sefer HaMamaarim 5698, p. 167.
12. Pirkei Avos 1:12. Ver a explicação desta Mishná em “In the Paths of Our Fathers“(Kehot, N.Y., 1994).
13. Cap. 32.
14. Rambam, Mishnê Torá, Hilchos Tefillah 13:2; Shulchan Aruch (Orach Chayim 428:4). Na maioria dos anos, a Parashá Bamidbar é lida no Shabat diretamente precedendo Shavuot. Mesmos naqueles anos em que a Parashá Nassó também é lida antes de Shavuot e a Parashá Bamidbar é lida uma semana antes, as lições que ela transmite servem como uma preparação espiritual para este festa.
15. Apesar de que a entrega da Torá é renovada a cada dia como mencionado acima, a renovação é mais abrangente em Shavuot, o aniversário da entrega da Torá.
16. Vayikra Rabbah 13:3, comentando sobre Isaías 51:4.
17. Ver a série de maamarim (discursos chassídicos) intitulados Yom Tov Shel Rosh HaShanah 5666, p. 23.
18. Mishneh Torah, Hilchos Melachim 11:3.
19. Koheles Rabbah 11:8.
20. Rabbeinu Nissim, fim do tratado Pesachim.
21. Yoel 2:22.

     
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