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A ação
foi completada; o rótulo pode ser colado. Sou oficialmente uma
“filha do divórcio”. Ou seria uma “filha de um
lar desfeito”?
O guet (documento de divórcio) de meus pais provocou uma mistura
de emoções; insegurança, tristeza, raiva, alívio.
Os fios estão tecidos juntos, e aos poucos estou percebendo que
esta é a maneira que deveria ser. O divórcio não
é algo tranquilo.
Eu tinha 21 anos quando soube que meus pais estavam se separando, e minha
primeira reação foi: “Graças a D'us. Finalmente.”
O casamento de meus pais tinha sido um desastre durante décadas,
terminando por chegar a um buraco negro de confiança destruída.
Nós, os filhos, não teríamos mais de fingir felicidade,
que tudo estava bem em casa. A infecção que tinha durado
anos finalmente tinha perfurado a pele, surgindo num final pútrido
de escolhas terríveis.
Minha mãe tinha uma grave desordem de personalidade (embora só
soubéssemos disso muito mais tarde). Seu pai tinha sido fisicamente
abusivo, a mãe fria e apática, e ela nunca tinha aprendido
a amar. Com cada ano em que ela se recusava a buscar ajuda, a desordem
piorava, reduzindo uma mulher brilhante a uma alma demente, perturbada.
Mas quem estava de fora não podia ver isto. Na superfície,
mamãe era uma respeitada diretora de escola que atraía as
pessoas com seu carisma, erudição e fantástico senso
de humor.
Nesse ínterim, meu devotado pai tornou-se um especialista em juntar
os pedaços, criando estabilidade num mar de caprichos e narcisismo.
Mamãe não merecia confiança para nada, mas Papai
era uma rocha.
Embora meus irmãos e eu sentíssemos a bomba prestes a estourar
por baixo da superfície, em geral, a vida era boa. Estávamos
em segurança. Meu pai, por natureza era um homem honesto, mas tinha
se tornado especialista em fingimento, inconscientemente mostrando um
show da sua vida. Somente quando crescemos foi que começamos a
entender a profundidade da doença de mamãe, e a impossibilidade
de ela manter uma parceria conjugal significativa.
No meu primeiro ano do Ensino Médio, comecei a entender a hipocrisia
no casamento de meus pais. Qualquer tensão em nossa casa era quase
sempre culpa da minha mãe, mas para o mundo em geral, ela era uma
maravilha pedagógica.
Papai, por outro lado, era considerado como o errado dos dois: bondoso
mas com pouco talento. A injustiça era revoltante.
Meu pai assumiu um papel horrendo: tornou-se nosso para-choque, engolindo
a raiva, os ataques de fúria, a enlouquecedora falta de lógica,
para que os filhos saíssem ilesos. O custo disso para sua saúde
emocional era alto, mas ele estava determinado a nos proteger. Mamãe
não tinha instinto maternal. Papai tinha instinto duplo.
Num nível subconsciente. Papai sabia que o casamento não
era viável. Mas ele era do tipo firme, que jamais deixava o barco
balançar, e não iria permitir isso. Fosse como fosse, ele
mantinha tudo funcionando, dando-nos o presente de uma infância
normal. E de modo geral, ele conseguiu. Ao contrário de muitos
filhos de divórcio, não vejo minha infância como uma
série de gritarias ou olhares repletos de ódio. Embora a
disfunção estivesse sempre presente, espreitando nas sombras,
explodia apenas intermitentemente. As doces lembranças da minha
juventude superam muito as negativas.
Em casa, obedecíamos ao pedido não verbalizado de papai
para não cutucarmos a onça com vara curta. Ele queria tanto
ter um casamento normal - como seus colegas advogados e médicos
- e não tínhamos a coragem de destruir suas ilusões.
Começamos então uma dança de negação
que durou uma década. Papai e nós, cada dançarino
totalmente cônscio da verdade nua e crua, mas não querendo
confrontá-la de uma vez. Pois se nós reconhecíamos
abertamente, em grupo, que o imperador não vestia roupas, a vida
como a conhecíamos não iria continuar.
Passaram-se os anos, e finalmente aconteceu. Mamãe fez algo que
comprometeu gravemente a segurança de minha irmã, e meu
pai não teve escolha. As cortinas tinham caído, e o alívio
foi profundo. Não teríamos mais de nos apresentar como a
família modelo. Eu não teria mais de lidar sozinha com meu
ressentimento e raiva. Eu não teria mais de esconder a verdade
dos mesmos rabinos e mentores que tinham adulado tanto minha mãe
no passado.
O divórcio foi um anúncio público de fracasso, e
agora, podíamos seguir em frente… e nos curarmos.
Ser um filho de divórcio é algo estranho. Você é
o produto de uma união destroçada, uma fusão defeituosa
de almas. Você é testemunha de um relacionamento falho, de
padrões repetidos de comportamento psicologicamente defeituosos.
O medo é constante: você vai repetir aqueles erros? Hoje,
uma auto-identidade totalmente desenvolvida e uma fé amadurecida
têm me ajudado a aceitar a realidade, de que D'us não comete
erros. Na canção bíblica de Haazinu, Moshê
mostra este pilar de fé: “A Rocha [D'us]! Perfeitas são
Suas obras, pois todos os Seus caminhos são justiça.”
Minha infância foi tumultuada em tantas maneiras, mas há
conforto em saber que foi feita para mim. D'us queria que eu enfrentasse
esse teste de vida específico. Meu trabalho agora é aprender
as lições e começar de novo. Emergi com cicatrizes,
mas também emergi com uma compreensão única sobre
pessoas e relacionamentos. Seguindo em frente, coloquei isso em uso.
Amigos têm me perguntado se eu desejava que meus pais tivessem se
separado antes, antes que a decadência afundasse num fosso embaraçoso.
Mas fico relutante em entrar nessa. Quando menina, eu poderia ter processado
adequadamente a tempestade de emoções, o senso de desordem
que vem com o divórcio? Não sei. Como adolescente impressionável,
autoconsciente, eu poderia ter lidado com o estigma social do divórcio?
Não sei. A longo prazo, eu teria sido melhor se papai tivesse terminado
o casamento mais cedo? Não sei.
Mas de uma coisa estou certa: ele fez o melhor que pôde. Em meio
a difíceis circunstâncias de vida, ele foi uma fonte de amor
e estabilidade. Quando ele poderia facilmente ter desmoronado e nos abandonado,
ele foi um leão: firmemente protetor e irradiando uma força
que escondia seu desespero interior.
O nosso é um mundo de falsidade. Minha mãe cintilante, inteligente,
querida por todos; o pai azul, a mediocridade personificada. No Mundo
da Verdade, porém, nossas percepções limitadas terão
um fim: veremos pessoas aparentemente comuns - aquelas que seguem com
a vida diária com fé e consistência, tomando decisões
altruístas, Divinas, com reconhecimento zero - sentadas no alto,
banhando-se com a luz do Criador que elas procuram imitar.
Papai, nossa esperança é que quando você olhe para
nós hoje - todos casados e felizes, com cônjuges amorosos
e estáveis - seu doloroso sacrifício tenha valido a pena.
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