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  Sou Uma Filha do Divórcio
  Conforme relatado a Leah Ben-Simon
 

A ação foi completada; o rótulo pode ser colado. Sou oficialmente uma “filha do divórcio”. Ou seria uma “filha de um lar desfeito”?

O guet (documento de divórcio) de meus pais provocou uma mistura de emoções; insegurança, tristeza, raiva, alívio. Os fios estão tecidos juntos, e aos poucos estou percebendo que esta é a maneira que deveria ser. O divórcio não é algo tranquilo.

Eu tinha 21 anos quando soube que meus pais estavam se separando, e minha primeira reação foi: “Graças a D'us. Finalmente.” O casamento de meus pais tinha sido um desastre durante décadas, terminando por chegar a um buraco negro de confiança destruída. Nós, os filhos, não teríamos mais de fingir felicidade, que tudo estava bem em casa. A infecção que tinha durado anos finalmente tinha perfurado a pele, surgindo num final pútrido de escolhas terríveis.

Minha mãe tinha uma grave desordem de personalidade (embora só soubéssemos disso muito mais tarde). Seu pai tinha sido fisicamente abusivo, a mãe fria e apática, e ela nunca tinha aprendido a amar. Com cada ano em que ela se recusava a buscar ajuda, a desordem piorava, reduzindo uma mulher brilhante a uma alma demente, perturbada. Mas quem estava de fora não podia ver isto. Na superfície, mamãe era uma respeitada diretora de escola que atraía as pessoas com seu carisma, erudição e fantástico senso de humor.

Nesse ínterim, meu devotado pai tornou-se um especialista em juntar os pedaços, criando estabilidade num mar de caprichos e narcisismo. Mamãe não merecia confiança para nada, mas Papai era uma rocha.

Embora meus irmãos e eu sentíssemos a bomba prestes a estourar por baixo da superfície, em geral, a vida era boa. Estávamos em segurança. Meu pai, por natureza era um homem honesto, mas tinha se tornado especialista em fingimento, inconscientemente mostrando um show da sua vida. Somente quando crescemos foi que começamos a entender a profundidade da doença de mamãe, e a impossibilidade de ela manter uma parceria conjugal significativa.

No meu primeiro ano do Ensino Médio, comecei a entender a hipocrisia no casamento de meus pais. Qualquer tensão em nossa casa era quase sempre culpa da minha mãe, mas para o mundo em geral, ela era uma maravilha pedagógica.

Papai, por outro lado, era considerado como o errado dos dois: bondoso mas com pouco talento. A injustiça era revoltante.

Meu pai assumiu um papel horrendo: tornou-se nosso para-choque, engolindo a raiva, os ataques de fúria, a enlouquecedora falta de lógica, para que os filhos saíssem ilesos. O custo disso para sua saúde emocional era alto, mas ele estava determinado a nos proteger. Mamãe não tinha instinto maternal. Papai tinha instinto duplo.

Num nível subconsciente. Papai sabia que o casamento não era viável. Mas ele era do tipo firme, que jamais deixava o barco balançar, e não iria permitir isso. Fosse como fosse, ele mantinha tudo funcionando, dando-nos o presente de uma infância normal. E de modo geral, ele conseguiu. Ao contrário de muitos filhos de divórcio, não vejo minha infância como uma série de gritarias ou olhares repletos de ódio. Embora a disfunção estivesse sempre presente, espreitando nas sombras, explodia apenas intermitentemente. As doces lembranças da minha juventude superam muito as negativas.

Em casa, obedecíamos ao pedido não verbalizado de papai para não cutucarmos a onça com vara curta. Ele queria tanto ter um casamento normal - como seus colegas advogados e médicos - e não tínhamos a coragem de destruir suas ilusões. Começamos então uma dança de negação que durou uma década. Papai e nós, cada dançarino totalmente cônscio da verdade nua e crua, mas não querendo confrontá-la de uma vez. Pois se nós reconhecíamos abertamente, em grupo, que o imperador não vestia roupas, a vida como a conhecíamos não iria continuar.

Passaram-se os anos, e finalmente aconteceu. Mamãe fez algo que comprometeu gravemente a segurança de minha irmã, e meu pai não teve escolha. As cortinas tinham caído, e o alívio foi profundo. Não teríamos mais de nos apresentar como a família modelo. Eu não teria mais de lidar sozinha com meu ressentimento e raiva. Eu não teria mais de esconder a verdade dos mesmos rabinos e mentores que tinham adulado tanto minha mãe no passado.

O divórcio foi um anúncio público de fracasso, e agora, podíamos seguir em frente… e nos curarmos.

Ser um filho de divórcio é algo estranho. Você é o produto de uma união destroçada, uma fusão defeituosa de almas. Você é testemunha de um relacionamento falho, de padrões repetidos de comportamento psicologicamente defeituosos. O medo é constante: você vai repetir aqueles erros? Hoje, uma auto-identidade totalmente desenvolvida e uma fé amadurecida têm me ajudado a aceitar a realidade, de que D'us não comete erros. Na canção bíblica de Haazinu, Moshê mostra este pilar de fé: “A Rocha [D'us]! Perfeitas são Suas obras, pois todos os Seus caminhos são justiça.”

Minha infância foi tumultuada em tantas maneiras, mas há conforto em saber que foi feita para mim. D'us queria que eu enfrentasse esse teste de vida específico. Meu trabalho agora é aprender as lições e começar de novo. Emergi com cicatrizes, mas também emergi com uma compreensão única sobre pessoas e relacionamentos. Seguindo em frente, coloquei isso em uso.

Amigos têm me perguntado se eu desejava que meus pais tivessem se separado antes, antes que a decadência afundasse num fosso embaraçoso. Mas fico relutante em entrar nessa. Quando menina, eu poderia ter processado adequadamente a tempestade de emoções, o senso de desordem que vem com o divórcio? Não sei. Como adolescente impressionável, autoconsciente, eu poderia ter lidado com o estigma social do divórcio? Não sei. A longo prazo, eu teria sido melhor se papai tivesse terminado o casamento mais cedo? Não sei.

Mas de uma coisa estou certa: ele fez o melhor que pôde. Em meio a difíceis circunstâncias de vida, ele foi uma fonte de amor e estabilidade. Quando ele poderia facilmente ter desmoronado e nos abandonado, ele foi um leão: firmemente protetor e irradiando uma força que escondia seu desespero interior.

O nosso é um mundo de falsidade. Minha mãe cintilante, inteligente, querida por todos; o pai azul, a mediocridade personificada. No Mundo da Verdade, porém, nossas percepções limitadas terão um fim: veremos pessoas aparentemente comuns - aquelas que seguem com a vida diária com fé e consistência, tomando decisões altruístas, Divinas, com reconhecimento zero - sentadas no alto, banhando-se com a luz do Criador que elas procuram imitar.

Papai, nossa esperança é que quando você olhe para nós hoje - todos casados e felizes, com cônjuges amorosos e estáveis - seu doloroso sacrifício tenha valido a pena.

 
 
       
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