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  Duas Vezes, Duas Tábuas
 
Por Rabino Jonathan Sacks
  Emoldurando os eventos épicos da Parashá dessa semana estão dois objetos – os dois conjuntos de tábuas, a primeira entregue antes, a segunda depois, do pecado do bezerro de ouro. Na primeira, lemos: “As tábuas eram a obra de D'us; a escrita era a escrita de D'us, gravada nas tábuas. Estes foram talvez os objetos mais sagrados da história; do início ao fim, a obra de D'us.”

Porém, dentro de horas estavam destruídas, quebradas por Moshê quando ele viu o bezerro e os israelitas dançando ao redor. As segundas tábuas, trazidas por Moshê em dez de Tishrei, foram o resultado de seu longo apelo a D'us para que perdoasse o povo. Este é o evento histórico por trás de Yom Kipur (10 de Tishrei), o dia marcado em perpetuidade como um tempo de favor, perdão e reconciliação entre D'us e o povo judeu. As segundas tábuas eram diferentes em um aspecto. Não eram totalmente a obra de D'us:

“Corte duas tábuas de pedra como as primeiras, e Eu escreverei sobre elas as palavras que estavam nas primeiras tábuas, que você quebrou.”

Aqui surge o paradoxo: as primeiras tábuas, feitas por D'us, não ficaram intactas. As segundas tábuas, o trabalho conjunto de D'us e Moshê, ficaram. Certamente a verdade deveria ter sido o oposto: quanto maior a santidade, mais eternas. Por que o objeto mais sagrado foi quebrado, ao passo que o menos sagrado continuou inteiro? Esta não é, como poderia parecer, uma questão específica às tábuas. É, na verdade, um poderoso exemplo de um princípio fundamental em espiritualidade judaica. Os místicos judeus distinguiram entre dois tipos de encotnro divino-humano. Chamaram-nos de it’aruta de-l’eyla e it’aruta de-l’tata, respectivamente, “um despertar do alto” e “um despertar de baixo”. O primeiro é iniciado por D'us, o segundo pelo homem.

Um “despertar do alto” é espetacular, sobrenatural, um evento que irrompe por cadeias de causalidade que em outros tempos ligavam o mundo natural. Um “despertar de baixo” não tem tamanha grandeza. É um gesto humano, totalmente humano. Porém, há uma outra diferença entre eles, na direção oposta. Um “despertar do alto” pode mudar a natureza, mas por si mesmo não muda a natureza humana. Nele, nenhum esforço humano foi empregado, aqueles para quem ele acontece são passivos. Enquanto dura, é avassalador; mas somente enquanto dura. Depois, as pessoas voltam àquilo que eram. Um “despertar vindo de baixo”, em contraste, deixa uma marca permanente.

Como os seres humanos tomaram a iniciativa, algo muda neles. Seus horizontes de possibilidades foram expandidos. Eles agora sabem que são capazes de grandes coisas, e porque fizeram isso uma vez, sabem que podem fazer novamente. Um despertar do alto transforma temporariamente o mundo exterior; um despertar de baixo transforma permanentemente nosso mundo interior. O primeiro muda o universo; o segundo muda a nós.

Dois exemplos: o primeiro: antes e depois da divisão do Mar Vermelho, os israelitas foram confrontados por inimigos: antes, pelos egípcios; depois pelos amalequitas. A diferença é total.

Antes do Mar Vermelho, os israelitas foram ordenados a não fazer nada: fiquem parados e verão a libertação que D'us lhes trará hoje… D'us lutará por vocês; precisam apenas ficar parados.1

Enfrentando os ismaelitas, porém, os próprios israelitas tiveram de lutar: Moshê disse a Yehoshua: “Escolha os homens, e vão lutar contra os amalequitas.”2 O primeiro foi “um despertar do alto”; o segundo, um “despertar de baixo”.

A diferença era palpável. Dentro de três dias após a divisão do mar, o maior de todos os milagres, os israelitas começaram novamente a reclamar (sem água, sem comida). Mas após a guerra contra oa amalequitas, os israelitas nunca mais reclamaram ao enfrentar um conflito. (a única exceção – quando os espiões retornaram e o povo perdeu a coragem – foi quando confiaram em testemunho relatado, não na perspectiva imediata da própria batalha). As batalhas lutadas por nós não nos mudam; as batalhas que lutamos, nos mudam.

O segundo exemplo: o Monte Sinai e o tabernáculo. A Torá fala sobre essas duas revelações da “glória de D'us” em termos quase idênticos: a glória de D'us pousou sobre o Monte Sinai. Durante seis dias a nuvem cobriu a montanha, e no sétimo dia D'us chamou Moshê de dentro da nuvem.

Então a nuvem cobriu a Tenda do Encontro, e a glória de D'us encheu o tabernáculo. A diferença entre elas foi que a santidade do Monte Sinai foi momentânea, ao passo que a do Tabernáculo era permanente (pelo menos, até o Templo ser construído, séculos depois). A revelação no Sinai era um “despertar do alto”. Foi iniciado por D'us. Tão avassalador foi que o povo disse a Moshê: “Não deixe que D'us fale mais conosco, pois se Ele o fizer, morreremos.”3 Em contraste, o Tabernáculo envolveu trabalho humano. Os israelitas o fizeram; prepararam o espaço estruturado que a Presença Divina iria preencher. Quarenta dias após a revelação no Sinai, os israelitas fizeram um bezerro de ouro. Mas após construírem o Santuário, não fizeram mais ídolos – pelo menos até entrarem na Terra.

Esta é a diferença entre as coisas que são feitas para nós e as coisas nas quais tomamos parte e fazemos por nós mesmos. A primeira nos muda por um momento, a segunda pela vida inteira.

Havia uma outra diferença entre as primeiras tábuas e as segundas. Segundo a tradição, quando Moshê recebeu as primeiras tábuas, ele recebeu somente Torah she-bichtav, a “Torá escrita”. Na hora das segundas tábuas, ele recebeu Torah she-b’al peh, a Torá Oral, também: “Rabi Yochanan disse: D'us fez um pacto com Israel somente em prol da Lei Oral, como está escrito: ‘Pois pela boca dessas palavras Eu fiz um pacto com vocês e com Israel.’”4

A diferença entre a Torá Escrita e a Oral é profunda. A primeira é a palavra de D'us, sem contribuição humana. A segunda é uma parceria – a palavra de D'us interpretada pela mente do homem. As seguintes são duas de diversas passagens notáveis para este efeito: Rabi Yehuda disse em nome de Shmuel: Três mil leis tradicionais foram esquecidas durante o período de luto por Moshê. Elas diziam a Yehoshua: “Pergunta” (através de ruach hakodesh, o espírito sagrado). Yehoshua respondeu “Não está no céu.” Eles disseram a Shmuel: “Pergunta”. Ele respondeu: ‘Estes são os mandamentos’ – implicando que nenhum profeta tem o direito de introduzir nada de novo.”5

Se mil profetas da estatura de Elijah e Elisha fossem dar uma interpretação a um versículo, e mil e um sábios oferecessem uma interpretação diferente, seguimos a maioria: a lei está de acordo com os mil e um sábios , e não de acordo com os mil profetas.6

Uma tentativa de reduzir a Torá Oral à Escrita – confiando na profecia ou na comunicação divina – equivoca sua natureza essencial como a parceria colaborativa entre D'us e o homem, onde a revelação encontra a interpretação. Assim, a diferença entre as duas espelha exatamente aquela entre as primeiras e as segundas tábuas. As primeiras eram divinas, as segundas o resultado da colaboração humana-divina.

Isso nos ajuda a entender uma gloriosa ambiguidade. A Torá diz que no Sinai os israelitas ouviram “uma grandiosa voz” “velo yasaf.”7 Duas interpretações são dadas para esta frase. Um diz “uma grandiosa voz que jamais fora ouvida antes,” a outra “uma grandiosa voz que não cessava” – i.e., uma voz que era sempre ouvida novamente. Ambas são verdadeiras. A primeira se refere à Torá Escrita, dada uma vez e nunca repetida. A segunda se aplica à Torá Oral, cujo estudo jamais cessou.

Isso também nos ajuda a entender por que foi somente após as segundas tábuas, não as primeiras, que “quando Moshê desceu do Monte Sinai com as duas tábuas de testemunho em suas mãos, ele não sabia que sua face estava radiante porque ele tinha falado com D'us.”8 Ao receber as primeiras tábuas, Moshê ficou passivo. Portanto, nada nele mudou. Para as segundas, ele estava ativo. Tinha uma parcela na produção. Ele cavara a pedra na qual as palavras seriam escritas. É por isso que ele se tornou uma pessoa diferente. Sua face brilhou.

No Judaísmo, o natural é maior que o sobrenatural, no sentido em que um “despertar de baixo” é mais poderoso em nos transformar, e mais duradouro em seus efeitos, que um “despertar do alto”. Foi por isso que as segundas tábuas sobreviveram intactas, ao passo que as primeiras não. A intervenção Divina muda a natureza, mas é a iniciativa humana – nossa aproximação a D'us – que nos muda.


NOTAS

1. Shemot 14:13-14
2. Shemot 17:9
3. Shemot 20:16
4. Shemot 34:27
5. Talmud, Terumá 16 a
6. Maimônides, Comentário sobre a Mishna, Introdução.
7. Devarim 5:18
8. Shemot 34:29
     
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