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  Em Direção A Um Propósito
 
 

O Caminho Para Cima
O nome da leitura da Torá desta semana, Ki Tissá, levanta uma questão. Literalmente, Ki Tissá significa “quando tu ergueres” e se refere à elevação das “cabeças dos filhos de Israel”1. Já que a maioria da leitura se centraliza no pecado do Bezerro de Ouro e suas consequências, poderíamos perguntar: Como pode esse terrível pecado contribuir para a elevação do Povo Judeu?

O pecado do Bezerro de Ouro representou uma trágica descida. A impureza transmitida pelo pecado da Árvore do Conhecimento saiu das almas do Povo Judeu na Entrega da Torá, mas retornou após o pecado do Bezerro2. Assim, este pecado é a fonte de todos os pecados subsequentes. Da mesma forma, todas as punições sofridas pelo Povo Judeu através dos séculos estão conectadas a esse pecado3. Que lugar pode ter um evento como esse em uma Parashá cujo nome indica a ascensão dos judeus?

Para Que O Homem Se Torne Mais Do Que Homem
Para responder esta questão, nós devemos expandir nossa estrutura conceitual, pois o estado ao qual D’us deseja levar a humanidade está acima da concepção humana comum. Isto é indicado pela expressão: “Quando tu ergueres as cabeças”; “as cabeças”, o intelecto humano, devem ser elevadas.

A essência de nossas almas é “uma parte real de D'us”4, e D'us deseja que o homem transcenda a si próprio e vivencie esse potencial Divino. Além disso, a intenção não é meramente a de nos elevarmos acima de nosso intelecto humano, mas que “ergamos as [próprias] cabeças”, remodelemos nossas mentes. Experimentar uma conexão super-racional com D’us não é suficiente; nossos próprios pensamentos, a maneira pela qual entendemos o mundo, devem abranger uma Verdade que transcende o intelecto.

Uma Jornada Planejada Por D’us

O intelecto é uma encruzilhada. Por um lado, é a faculdade que permite à humanidade crescer e expandir seus horizontes. Por outro lado, um intelecto de um mortal é, por definição, limitado. Ademais, todo intelecto está enraizado no ego; quanto mais alguém entende, mais forte seu sentimento de individualidade vem à tona.

Seguir nosso próprio entendimento pode nos levar a ver a existência material ou, pelo menos, alguns de seus aspectos, como estando separada de D'us. Nossas mentes podem entender como certas entidades e experiências poderiam servir de canais para a expressão da Santidade. Outras entidades e práticas materiais, entretanto, parecem ser estranhas àquele propósito e nós rejeitamos a possibilidade de que elas também possam servir a esta função.

Seguindo esta abordagem ao extremo, algumas formas de serviço a D’us se esforçam para evitar totalmente o confronto com a existência material, ficando, em vez disso, dentro do domínio do espiritual. Apesar de existirem certas virtudes nesta abordagem, ela contém um defeito inerente: ela encoraja a noção de que a realidade material existe separada da santidade5.

A verdade final, as “alturas” às quais as cabeças dos judeus devem ser elevadas, é a de que todo aspecto da existência pode expressar a verdade de Seu Ser6. Isto é refletido na descrição da Torá sobre os esforços de Avraham para espalhar a consciência da existência de D’us7: “E lá ele proclamou o nome de D’us, o Senhor eterno”. O versículo não afirma ?-? ????? “D’us do mundo”8, o que poderia indicar que D’us é uma entidade e o mundo é uma entidade separada. Em vez disso, ele afirma ?-? ????, indicando que a Divindade e o mundo são um.

Mesmo depois que este impulso é aceito, entretanto, existem certos aspectos do ser que parecem separados d’Ele. Existirá Divindade na maldade, por exemplo? E, se existir, como pode o homem fazer com que essa Divindade seja revelada?

Apesar de os mortais não poderem conceber um ponto de convergência entre a maldade e a santidade D'us pode. De fato, ele traça caminhos que levam cada indivíduo e o mundo em geral a tal interseção. Com a Providência Divina, Ele cria situações nas quais nenhum homem justo entraria voluntariamente, forçando-o a se envolver com (e, assim, elevar) os interesses materiais mais básicos.

Esta é a intenção da ordem de “erguer as cabeças dos filhos de Israel”; que mesmo dentro do domínio caracterizado pela separação, maldade e ego, pode surgir uma consciência da ilimitada verdade espiritual de D’us.

A Espantosa Intriga de D’us
Neste caminho, o pensamento chassídico descreve o pecado como9 “uma terrível intriga planejada contra o homem”. Os judeus, por natureza, estão acima de qualquer conexão com o pecado10. Se o yetzer hará de alguém subjugá-lo e o fizer pecar, isto é porque o yetzer hará foi empurrado das Alturas para levá-lo a esse ato. Isto é intencional, “uma intriga horrível” planejada por D’us para produzir uma união mais elevada e mais completa entre D’us, aquele indivíduo e o mundo em geral.

Em sua explicação da declaração de nossos Sábios11 de que “No lugar de baalei teshuvá, mesmo o mais completamente justo dos homens não pode alcançar”, o Rambam [Maimônides] afirma que os baalei teshuvá estão em um nível mais alto porque “eles vencem melhor sua [má] inclinação”12. Os justos não têm de lutar tanto contra suas más inclinações. Por serem justos, sua má inclinação é anulada13. Um baal teshuvá, por outro lado, possui uma poderosa má inclinação como evidenciado por seu pecado e, ainda assim, ainda deseja se ligar a D’us.

Além disso, nossos Sábios ensinam14 que a teshuvá transforma em méritos mesmo os pecados que uma pessoa comete intencionalmente. Isto eleva os mais baixos aspectos da existência que produzem seu sustento do domínio da klipá e os traz a uma ligação com D’us.

Por quê um baal teshuvá tem o potencial de elevar aspectos da existência que estão, por natureza, distantes da Divindade? Para que se esforce na teshuvá, uma pessoa deve tocar seus mais profundos recursos espirituais, aquela alma que é “uma parte real de D’us”. Quando ele atinge este ponto, ele é capaz de apreciar que nada está separado d’Ele. E, em sua vida, ele é capaz de mostrar como cada elemento da existência expressa Sua Verdade.

Esse processo é um exemplo do padrão “uma descida com o propósito de uma subida”15. Nossa subida àqueles picos que nosso intelecto não pode atingir por si só envolve uma descida a níveis que nosso intelecto normalmente rejeitaria.

Três Fases
Baseado no exposto acima, nós podemos apreciar a sequência da Parashá Ki Tissá. O objetivo da ascensão do Povo Judeu é declarado no versículo inicial. Mais tarde, a leitura continua com as ordens finais para a construção e inauguração do Santuário, a oferenda de incenso e a entrega das Primeiras Tábuas. Todos esses assuntos refletem uma conexão com D’us acima dos limites da experiência comum.

Para que aquela conexão penetre o domínio terrestre, e para que ela permeie até mesmo os mais baixos aspectos da existência, segue-se a narrativa do Pecado do Bezerro de Ouro e a quebra das Tábuas. Esta terrível queda motivou o Povo Judeu para que voltasse para D’us em teshuvá, evocando uma terceira fase16: a revelação dos Treze Atributos de Misericórdia, um nível totalmente ilimitado de Divindade que abrange até mesmo os mais baixos níveis.

O mais elevado clímax encontra expressão na entrega das Segundas Tábuas17 e o evento final mencionado na Parashá desta semana, o brilho do semblante de Moshê.18

O brilho da face de Moshê manifestou a fusão final do físico e do espiritual. Luz Divina brilhava do corpo físico de Moshê.

E Finalmente, Ascensões Sem Descida

Ciclos semelhantes de descidas e subidas formaram a história de nosso povo. O objetivo deste processo é uma união final entre o espiritual e o material, a Era da Redenção, quando “o mundo será preenchido pelo conhecimento de D’us como as águas cobrem o leito do oceano”19.

Quando visto nesse contexto, todos os anos de exílio aparecem como um mero “momento fugaz”20. Pois o exílio não tem nenhum propósito próprio; ele é meramente um meio de se evocar uma conexão mais profunda com D'us e um meio que permite que aquela ligação permeie todo aspecto da experiência. Quando este objetivo é atingido, o exílio acabará; para citar o Rambam21: “A Torá prometeu que, no final de seu exílio, Israel se arrependerá e imediatamente será redimido”.

E, então, começará uma subida sem fim, como está escrito22: “Eles avançarão de força em força e aparecerão perante D’us em Tsyion”.


Notas
1. Shemot 30:12. No contexto da leitura da Torá, o versículo deve ser lido: “Quando tu fizeres um censo dos filhos de Israel”.
2. Shabat 146a; Zohar I, 52b, II, 193b; Likutei Sichos, Vol. IX, p. 9.
3. Sanhedrin 102b; Rashi, Shemot 32:35.
4. Tanya, cap. 2.
5. Em um sentido definitivo, tal abordagem pode ser equacionada com a adoração a falsos deuses. Pois a noção de que existe uma entidade separada de D’us é a fonte da adoração de ídolos. Ver o maamar Veyadaata, 5657 (Kehot, N.Y., 1993)].
6. Rambam, Mishnê Torá, Hilchos Yesodai HaTorá 1:1.
7. Bereshit 21:33.
8. Ver Likutei Tora, Devarim, 42d; conclusão do maamar início Anochi Havayah Elokecha, 5673.
9. Cf. Salmos 66:5.
10. Ver Avodá Zará 4b-5a e o comentário de Rashi.
11. Berachot 34b.
12. Mishnê Tora, Hilchos Teshuvá 7:4.
13. Ver Tanya, cap. 10.
14. Yoma 86b.
15. Cf. Makos 7b.
16. Baseado no que foi dito acima, nós podemos também traçar uma conexão com os três festivais de peregrinação mencionados nesta leitura da Torá. Estas festas também seguem um padrão similar dos três: Pêssach representa uma revelação Divina além dos limites da experiência mundana. Depois disso, vem Shavuot, uma festa associada com a colheita de trigo, uma ênfase no trabalho do homem. E, então, Sucot, a festa da colheita que alude à reunião final.

17. Apesar de que as Primeiras Tábuas foram o “trabalho de D’us’, enquanto as Segundas Tábuas foram talhadas por Moshê, estas últimas refletem uma união mais abrangente entre a Divindade e nosso mundo. Isto é refletido no fato de que as Primeiras Tábuas foram quebradas, pois sua santidade não podia coexistir com as realidades crassas da existência mundana, enquanto as Segundas Tábuas são eternas (Rambam, Mishnê Torá, Hilchos Beis HaBechirá 4:1), representando a fusão da santidade com a existência material. Não somente são as Segundas Tábuas associadas com uma ligação mais profunda, mas elas também representam um tesouro mais completo de conhecimento da Torá. Nossos Sábios relatam (Nedarim 22b) que se Moshê não tivesse destruído as Primeiras Tabuas, nós teríamos recebido somente os cinco Livros do Chumash e o Livro de Yehoshua. Ao contrário, as Segundas Tábuas estão associadas com a Lei Oral, o aspecto da Torá que é verdadeiramente ilimitado.

18. Neste contexto, nós podemos apreciar porque a Parashá Ki Tissá segue as Parashiot Terumá e Tetsavê que descrevem as ordens de D’us a Moshê em relação à construção do Santuário apesar de que os eventos descritos na Parashá Ki Tissá aconteceram em primeiro lugar. A construção do Santuário representa a transformação do mundo em uma moradia para D’us, o objetivo fundamental da existência do mundo. Assim, depois que o mandamento da criação de tal moradia é dado, mas antes de Moshê comunicá-lo ao povo, a Torá relata o padrão de três fases através do qual a intenção Divina para este mundo pode ser cumprida.

19. Yeshayahu 11:9 citado pelo Rambam (Mishnê Torá, Hilchos Melachim 12:5) na conclusão de sua discussão sobre a Era da Redenção.
20. Yeshayahu 54:7.
21. Mishnê Torá, Hilchos Teshuvá 7:5.
22. Salmos 84:8.

     
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