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  Bondade vs. Santidade
  Por Simon Jacobson
 

Serás sagrado, pois Eu,o Eterno teu D'us, sou sagrado – diz a porção desta semana da Torá (Vayicrá 19:2).

De quanto um ser humano mortal é capaz? Podemos nós, criaturas de hábito, cerceadas por limites naturais, atingir a verdadeira transcendência? Ou estamos presos pelos nossos limites finitos, incapazes de nos libertar de nossas próprias margens, assim como um leopardo não pode mudar suas manchas ou um tigre suas listras?

Muitos pensadores e teóricos há muito mantêm a posição de que o homem jamais pode escapar de seu universo autocontido. Fazendo parte da estrutura da existência, estamos confinados pelos nossos limites inerentes, talvez esticando-os um pouco, mas terminaremos por bater a cabeça no teto em nossa busca pelo imortal. Não importa quão longe vá o finito, jamais poderemos atingí-lo. Se não fizer parte dos nossos limites naturais de tempo e espaço e de nossas dependências em comida, sono, abrigo e outros, nossos próprios interesses subjetivos não nos permitirão ir além de nós mesmos.

Uma versão agressiva dessa pespectiva – baseada no modelo Darwiniano-Freudiano de que a sobrevivência, o autointeresse e a autoconservação são o impulso principal de todas as espécies – afirma que até nossas tentativas de transcendência são parte das necessidades de servir ao “gene egoísta”. As espécies podem ter uma necessidade de crer na salvação, mas até a própria fé é parte do programa matriz que nos mantém reféns para sempre.

Outra escola de pensamento, porém, advoga a capacidade humana de realmente elevar-se acima e além de seus limites. Seja por meio da música, arte ou romance, o anseio humano de ir além das necessidades de sobrevivência permanece no âmago do espírito humano, alimentando nossas aspirações e sonhos – anseios que podem atingir alturas inimagináveis.

Os místicos em particular ensinam como podemos, com vários exercícios, tradições e meditações, nos conectar com a luz interior, o espírito mais elevado, a unidade mais profunda, a energia Divina – seja qual for o nome usado para se referir à capacidade humana de tocar o céu. Fé e religião oferecem às pessoas maneiras de irem além de sua solidão existencial, e introduzem na vida do homem comum dimensões de outra realidade.

Mas então nos resta o dilema: como podemos encaixar o infinito dentro de nossos limites finitos? Energia ilimitada dentro de recipientes limitados? O Divino pode ser integrado ao humano? O imortal dentro do mortal? O eterno nos limites temporais de nossas vidas e estruturas, sem nos aniquilar? A resposta na porção desta semana da Torá é inequívoca: “Serás sagrado”.

Bondade, virtude e amor – por maiores que sejam, ainda são parte do sistema, e assim, limitados por suas regras, fronteiras e parâmetros. A santidade, em contraste, é mais que humana. Tornar-se sagrado significa que sua virtude não está apenas em seus termos e sua conveniência, mas vai além de si mesma ao ajudar o outro, mesmo quando isso não é conveniente para você. O amor humano é limitado à sua capacidade e disposição de amar, predicado e condicionado pelas suas necessidades; “você” ainda é um fator, distinto e à parte de seu ente querido. O amor sagrado é transcendente e incondicional; está indo além de si mesmo até o ponto em que “você” não mais domina; você e seu ente querido são um só.

A Torá está nos dizendo: sim, podemos e, sim, devemos nos tornar mais que humanos. Sim, somos capazes de transcender o próprio sistema que nos sustenta. E além disso, temos o poder de transformar o sistema em si mesmo. Santificando nossas vidas materiais transformamos os limites confinados da existência numa forma de energia mais elevada.

Mas como isso é possível? Não temos a regra de que nenhum sistema pode mudar a si mesmo? Somente uma força fora do sistema pode mudar aquele sistema.

A resposta está na segunda metade do versículo: “Serás sagrado, pois Eu, o Eterno, sou sagrado.” D'us partilhou Sua Divina Santidade conosco. Em outras palavras, embora estejamos no sistema, temos dentro de nós uma parte que está além do sistema. E essa parte nos permite transcender e até transformar o sistema.

Os seres humanos têm dois componentes: uma parte que é bastante do sistema, governada pelas leis da natureza; uma segunda parte enraizada além do sistema. Minerais, vegetais e animais têm somente a primeira parte; como um relógio, eles sempre seguem padrões previsíveis. Os seres humanos têm também o segundo componente, permitindo-lhes transcender a própria natureza. A todo momento em nossas vidas temos a opção – qual parte de nós mesmos controlará nossas vidas? Servir nossas próprias necessidades ou (até saudáveis e amorosas) ou servir a um propósito mais elevado, santificando a vida.

Em termos práticos ser sagrado significa sair de sua zona de conforto e do comportamento convencional. Mesmo que você esteja fazendo coisas boas, desde que sejam por hábito e de cor, você não é chamado aquele que está “servindo” ao Divino – avodat Hashem. “Avodah” significa algo que vem com esforço, esforço extenuante, não por hábito, mesmo um que seja bom.

Enquanto nosso comportamento é definido pelos parâmetros de nossas inclinações naturais e rotinas adquiridas, permanecemos encurralados na própria estrutura que estamos seguindo. Quando vamos além da nossa zona de conforto e fazemos algo inesperado permitimos que nossa alma Divina venha à tona, libertando-nos das amarras dos limites da natureza. Por sua vez, isso nos permite santificar nossa existência. Não expandimos meramente nossos limites naturais, mas ao irmos além de nós mesmos introduzimos na existência uma dimensão que está além dela – assim, transformando-a e consagrando-a.

Ao lermos a porção desta semana – Kedoshim tehiyu – é um momento excelente para cada um de nós resolver fazer algo novo e imprevisível para alguém que amamos ou para um estranho. Fazer algo sagrado.

E o momento não poderia ser mais apropriado. À medida que saímos das celebrações da transcendência de Pêssach – liberdade das amarras e limites (o significado da palavra hebraica mitzrayim) – Kedoshim tehiyu nos impele a santificar nossas vidas.

Seja sagrado. Não seja apenas bom, seja sagrado. Não seja apenas humano, seja Divino.

       
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