O Paradoxo do Livre Arbítrio  
 
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  Sexta questão: Causa Primordial
   
 

Se D'us é a Causa Primordial, tudo não pára por aqui?

A resposta curta:

D'us não é Causa Primordial. Está muito além disso. Ele também não cria mundos numa maneira de causa e efeito, mas em saltos ontológicos.

Uma resposta um pouco mais longa:

Voltemos aos clássicos. No Livro do Conhecimento, o clássico gigante dos codificadores judeus, Maimônides, explica que o livre arbítrio de cada pessoa é "Um princípio importante e o pilar da Torá e de Mitsvot." Torá significa que D'us nos instrui. Mitsvá significa que Ele nos comanda. E então Ele recompensa e/ou pune, e ministra justiça com compaixão. Nada disso é imaginável sem primeiro assumir que temos livre arbítrio. Maimônides então prossegue para descrever como alguns de nós podemos perguntar: "O Eterno, bendito seja, não sabe de tudo antes que aconteça? Ele sabe que uma determinada pessoa será justa em sua vida, ou Ele não sabe? Se ele sabe que esta pessoa será justa, então é impossível que não seja justa. E se você disser-me que Ele sabe que esta pessoa será justa, mas a pessoa apesar disso torna-se perversa - então você está dizendo que Ele não conhece claramente o assunto!"

Você reconhecerá esta pergunta como - aparentemente - a terceira questão em nossa série. Lá, eu apresentei a resposta simples e clássica que numerosos eruditos judeus e não-judeus têm dado no decorrer dos tempos.

Porém Maimônides não fornece esta resposta. Em vez disso, escreve: "Saiba que a resposta a esta pergunta é maior que o tamanho da terra e mais larga que o mar. Há muitos princípios importantes e montanhas elevadas dependendo dela. Mas você deve perceber e entender isso que estou para dizer-lhe:

"Já explicamos no segundo capítulo das Leis das Fundações da Torá que o Eterno, bendito seja, não sabe com uma consciência que Lhe seja externa, como fazem os seres humanos. Conosco, nós e o conteúdo de nossa consciência são duas coisas. Mas com ele, que Seu nome seja louvado, Ele e aquilo que está em Sua consciência são um só.

"Veja, assim como não está dentro da capacidade humana entender e descobrir a verdadeira realidade do Criador, pois está escrito: 'Pois nenhum homem pode ver-Me e viver' - assim não está dentro da capacidade de um ser humano apreender e descobrir a consciência do Criador. Isso é o que disse o profeta: 'Pois meus pensamentos não são seus pensamentos, e Meus caminhos não são seus caminhos.' E assim sendo, não temos a capacidade de conceber como o Eterno, bendito seja, conhece todas as criações e eventos. Mas nós sabemos sem sombra de dúvida que as ações de cada pessoa estão nas mãos daquela pessoa. O Eterno, bendito seja, não força a pessoa, ou decreta o que ela faz.

"Não sabemos isso somente pela tradição recebida, ao contrário, há provas claras com erudição. E por causa disso aprendemos através da profecia que cada pessoa é julgada segundo seus atos: fez o bem, ou fez o mal? E este é o tronco da árvore na qual todas as palavras da revelação (i.e., a Torá e os subseqüentes profetas) estão suspensas."

Veja, há um mistério aqui, que todos aqueles que estudam estas palavras de Maimônides perguntam: Por que fazer uma pergunta se você não tem a resposta? E além disso, a resposta não é simples? Respondemos isso mais acima, com a resposta dada por muitos filósofos clássicos, judeus ou não.

Colocado de forma simples, Maimônides não está fazendo a pergunta 3, mas a 6. E ele não está contornando a questão, está fornecendo uma resposta.

Falar sobre D'us como uma causa primordial é um antropomorfismo. Como escreveu um filósofo: "D'us fez o homem à Sua imagem, e o homem devolveu-Lhe o favor." A percepção e a cognição humana funcionam visualizando cada coisa como um resultado de um estado precedente. Construímos histórias em nossa mente: primeiro isso aconteceu, e por causa daquilo, isso aconteceu, e assim por diante. Estas histórias são essenciais a nossa sobrevivência - sem elas estaríamos completamente perdidos quanto ao que fazer em seguida em qualquer determinada situação. De fato, muitos problemas psicológicos podem ser atribuídos à incompetência da pessoa em construir histórias coerentes para sua realidade. De forma contrária, o progresso humano está intrinsecamente ligado com nossa capacidade de narrar histórias lineares e seqüenciais - pelo desenvolvimento da linguagem, símbolos escritos, fonéticos, matemáticos, impressão, cálculo, etc.

Basicamente, o mundo da humanidade é um mundo de causa e feito. Não podemos imaginar de outra forma.

Não é este o caso do mundo do Criador. Como escreve Maimônides, Seu conhecimento não é como o nosso. Nosso conhecimento é sobre as coisas fora de nós mesmos. Em nossa mente, primeiro uma coisa não era, e depois é. Tornou-se. E assim perguntamos: "De onde isso tornou-se?" E relacionamos isso à coisa que era imediatamente antes.

Em nossa mente, há uma multiplicidade de "coisas" "lá fora", e precisamos atá-las juntas com a conexão causal.

Na mente do Criador, existe apenas um único todo. Sim, Ele está consciente de todas as coisas. Sua consciência é a própria existência delas. Todas as coisas são nada mais que uma manifestação de Sua consciência delas. Mas em Seu conhecimento, os termos "causa" e "efeito" são irrelevantes - porque estes termos implicam que há mais que uma coisa. Mas como poderia uma coisa causar outra, quando não há nenhuma outra? Como poderia Sua consciência ser a causa de algo, quando nada há além de Sua consciência?

Talvez ajude tentar imaginar um aspecto essencial da criação, que é o tempo a partir da perspectiva de seu Criador. Em sua consciência, o tempo existe - porque Ele deseja que exista. Mas o tempo existe como uma seqüência unidirecional de eventos? Ele tem de esperar que as coisas aconteçam? Obviamente não. Ao contrário, como descreve o Zôhar, Ele vê todas as coisas do início ao fim, num simples relance. Com esta vista, que significado têm causa e efeito?

Resumindo, para Ele não há tal coisa como um evento tornando-se, pois tudo está lá perante Ele. Também não há uma multiplicidade de coisas. Nem mesmo uma dualidade d'Ele, a Causa, e nós, o efeito. Ao contrário, não há nada senão uma única unicidade, na qual os termos causa e efeito não têm relevância.

Na linguagem da Cabalá, isso é chamado de "Luz Circundante". No Tanya, Rabi Shneur Zalman desvela o verdadeiro significado deste termo, afirmando que ele não pode significar envolver no sentido de rodear pelo lado externo - porque tudo está contido e impregnado com a luz circundante. Ao contrário, está dizendo que a Consciência Superior circunda todo conhecimento como um único todo, no qual todas as coisas estão no mesmo nível, sem este ser mais elevado e este inferior, este antes e este depois.

Criação sem causa

Esta é a mesma Consciência Superior que discutimos na seção precedente. Na ordem das coisas, ela age como a fonte de tudo que existe dentro do domínio da Consciência Inferior - que inclui nosso mundo subjetivo. Mas, como veremos, assim como não há causa e efeito no domínio da Consciência Superior, assim também os mundos criados não se estendem a partir daí em forma de causa e efeito.

Por que a Luz Circundante não pode ser chamada uma "causa primordial" à Criação? Porque quando dizemos que algo é uma causa para um efeito, queremos dizer que o efeito está oculto lá dentro de sua causa em potencial, esperando para acontecer. Mas, na luz circundante, como explicamos, não há potencial para que nada seja. A questão então é: Se assim for, como qualquer coisa vem a ser, afinal?

De fato, esta é apenas outra rota para o enigma que intrigou tantos filósofos e cabalistas. Como, a partir de simples unicidade, chegamos a este mundo fragmentado e múltiplo?

Foi o Ari, Rabi Yitschac Luria, que forneceu uma solução. Ele ensinou que, sim, a partir da Luz Infinita é impossível chegar a um mundo finito. Portanto, D'us simplesmente pôs esta realidade de lado e fez espaço para uma outra. Apenas quando o vácuo foi estabelecido, Ele então traçou uma gota da primeira realidade dentro da segunda, e a partir daí criou um mundo. Ele chamou este processo de tsimtsum, com o significado aproximado de 'contração'.

No frigir dos ovos, a resposta do Ari reduz-se a isso: D'us apenas o fez.

A Criação, então, não ocorre como um processo lógico de causa e efeito. O que existe agora não é apenas uma emanação inevitável do que existiu antes. Ao contrário, é um ato deliberado, originando-se de um lugar totalmente imprevisível, além da Causa. Como escreve Rabi Shneur Zalman, "Ele que não é o efeito de nenhuma causa, Cuja existência é apenas de Seu próprio Ser, somente Ele pode revelar algo a partir da absoluta ausência de qualquer coisa, sem nenhuma causa precedendo-a." (Igueret Hakodesh, cap. 20).

O que fez D'us? Nada. Ele apenas é. O que fez D'us criar um mundo? Nada. Ele apenas o fez. O mesmo D'us.

Em 1905, muito antes que o princípio da incerteza aplicasse o axioma da causalidade sobre o bloco de execução, Rabi Sholom Dov Ber de Lubavitch escreveu uma descrição transpondo a escala do processo criativo cósmico. Aplicando a metáfora a partir da criatividade dentro da psique humana, ele ilustrou como cada passo ao longo da rota a partir do pensamento primordial do ser até a atividade mundana deste mundo é um salto artificial a partir daquilo que veio antes. Cada etapa é totalmente imprevisível, até mesmo impossível, dentro do reino que está antes e além de cada etapa. Mesmo onde aparentemente haja uma ordem causal, é apenas superficial. Olhando mais profundamente, cada passo deve ser entendido como um ato deliberado, sem precedente, originando-se numa consciência primordial que está muito além da causa e efeito.

De fato, isso combina muito com a experiência humana. Estamos constantemente nos surpreendendo, sem ter pista "de onde vem esta idéia?" ou "por que eu reagi assim?" ou ainda "quem falou estas palavras que saíram de minha boca?" Os psicólogos demonstraram que somos melhores prevendo o comportamento de outras pessoas que prevendo o nosso próprio. Na área da criatividade, incluindo as descobertas científicas, o fenômeno é ainda mais pronunciado. Como escreve Robert Pollack:

"Momentos de discernimento na ciência não são reproduzíveis, nem é a ocorrência deles modelada por qualquer hipótese própria. Como a percepção científica não pode ser atrelada ao motor de um teste experimental, cada ocorrência poderia bem ser um presente de uma força impenetrável. Boas idéias surgem na mente de um cientista como presente do incognoscível. Elas não são, como são os dados, simples troféus de um conflito com o desconhecido" (Robert Pollack 2000, A Fé da Biologia e a Biologia da Fé, Colúmbia Press, pág. 15).

Acontece que a psique humana é à semelhança de D'us, afinal. Em outras palavras, conforme explicam tantos dos comentários, à imagem que Ele usou para criar o céu e a terra: um paradigma de saltos inéditos e limites insondáveis, originando-se a partir daquilo que somente pode ser descrito como o Insondável. Aquele Insondável é a essência do que o judeu adora como D'us.

O Insondável instila em cada um de nós o sopro da vida, e com o poder deste sopro nós escolhemos a vida.

Conclusão:

Respondi a todas as perguntas? Espero que não. Seria um mundo bem enfadonho se eu pudesse. Na verdade, se você leu isso com qualquer concentração mental, deve ter uma centena de vezes mais perguntas do que quando começou.

Esperemos que as explicações que apresentei acima a partir das obras de nossos rabis tenham demonstrado que o dito do livre arbítrio e monoteísmo absoluto não seja um absurdo, não obstante também não seja inteiramente compreensível.

Se há algum outro ponto a ganhar com isso tudo, é o mais prático: que cada um de nós tem a posse de seu destino.

"Como pode ver, coloquei perante vós hoje a vida e o bem, a morte e o mal... portanto, escolha a vida!" (Devarim 30).

 

 

 
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