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  Por Que Precisamos de Líderes?
 
Por Rabino Jonathan Sacks
 

“Por que precisamos de um líder” é o tema exato da porção dessa semana da Torá. Côrach e seus parceiros desafiam Moshê com o seguinte argumento: “Todas as pessoas na comunidade são sagradas, e D'us está com elas. Por que vocês estão se colocando acima da congregação de D'us?”

O fato de que o argumento de Côrach esteja documentado para a posteridade é prova de que sua posição tem mérito. Na verdade, Côrach era um “pikach”, um homem sábio. Assim seu argumento não deve ser descartado facilmente; é um ponto de vista inteligente que exige deliberação e consideração.

Côrach estava essencialmente argumentando contra hierarquias burocráticas. Torá e Judaísmo são construídos sobre o princípio firme e inabalável de que todas as pessoas têm uma alma Divina (criada à imagem de D'us), e por isso têm acesso a D'us o tempo todo. Onde então, Côrach perguntou, há espaço para líderes que estão “acima da congregação de D'us?”

Nenhum indivíduo possui a Torá. Ela pertence a todas as pessoas. Por quê? Ora, porque a Torá não é um produto de marketing, nem uma empresa. A Torá é a Divina verdade – um projeto para a vida, consistindo em conhecimento e informação dadas a todas as pessoas para orientá-las para encontrar seu caminho neste mundo. Assim, a Torá é grátis. Ninguém tem monopólio sobre a Torá e ninguém pode exigir “royalties” pelo seu estudo. Na verdade, o Talmud diz que toda criança aprende a Torá ainda no útero da mãe durante a gravidez: na nossa psique está gravada a vontade e a sabedoria Divinas – todas as ferramentas que precisamos para nossa jornada de vida.

Este fato poderoso pode ser avaliado ao ver os efeitos da abordagem contrária. “A partir de meus inimigos tornei-me sábio.” Sempre que um regime fascista ou totalitário sobe ao poder, a primeira coisa que estabelece é um “centro da verdade da informação”. Ora, porque para controlar uma população você precisa controlar a mente das pessoas.

“Propaganda” é como eles chamam isso. Assim, o regime irá controlar a mídia e os meios de comunicação, para garantir que o povo veja e escute somente as informações que os líderes desejam transmitir. Liberdade de imprensa– o fluxo livre de informação é proibido, um suicídio definitivo para qualquer poder ditatorial. Como disse Thomas Jefferson, se pudesse escolher, ele escolheria uma emprensa livre para libertar o governo. Porque sem imprensa livre não há governo livre. Sempre que você ouve que há um “centro de verdade e informação,” fique certo de que não há nem “verdade” nem “informação”…

Côrach dizia exatamente isto. “Todas as pessoas na comunidade são sagradas, e D'us está com elas. Por que vocês estão se colocando acima da congregação de D'us.” Por que precisamos de líderes e professores e correr o risco de abuso. Como temos visto com frequência, também ultimamente, como as chamadas “autoridades” têm abusado de sua posição, e não ensinaram a pura verdade, mas sua versão distorcida da verdade. Quantas pessoas foram magoadas por acreditar inocentemente em seus mestres, somente para depois (algumas mais tarde que outras, e algumas ainda não) descobrir como aqueles professores desrespeitaram a verdade?

Portanto Côrach argumentava, por que arriscar? A Torá foi dada por D'us a todo o povo, e eles são todos sagrados, por que dar poder exclusivo aos líderes, poder que pode ser abusado?

Há mais de três mil anos a Torá foi outorgada no deserto do Sinai exatamente para impedir a possibilidade de abuso fascista. Ao dar a Torá no deserto, que é a terra “de ninguém”, D'us estava nos dizendo que “nenhuma cidade pode alegar direitos sobre a Torá. Eu dei Minha verdade a todos, e cada um de vocês tem acesso a ela.” Fato incrível. A Bíblia – a Torá – é o maior campeão de vendas da história. Mesmo assim, ninguém a possui, ninguém pode exigir royalties por ela!

E a Torá foi passada de geração em geração, numa corrente interminável, sem transações corporativas e infraestruturas burocráticas. Moshê não escolheu uma “junta de diretores” e um novo Chefe Executivo. Moshê nos deixou a Torá e seus estudantes, e assim continuou de geração em geração. Como está delineado em Pirkei Avot (Ética dos Pais): “Moshê recebeu a Torá do Sinai e a passou adiante para Joshua; Joshua para os Anciãos; os Anciãos para os Profetas…”

Qual foi então o erro de Côrach, erro grave? Seu argumento parece plausível e até verdadeiro. Qual é a resposta a essa pergunta: Por que precisamos de líderes, e o que os impedirá de abusar do poder?

O grave erro de Côrach estava em sua compreensão da natureza de um verdadeiro líder. Em sua mente um líder significava uma pessoa poderosa que serve como intermediário humano entre D'us e as pessoas, entre a verdade da Torá e os estudantes. Ele pensava que um llíder é definido pelas suas forças – sabedoria, carisma, riqueza, todas as qualidades necessárias para liderar um grande grupo de indivíduos.

Um verdadeiro líder é exatamente o oposto. É definido não por aquilo que é, mas pelo que não é. A única qualidade mais importante de um verdadeiro líder é bitul – humildade (Moshê era o mais humilde entre todos na Terra.) Ele é invisível, e portanto se torna um veículo (merkavá) para a Divindade; é um exemplo vivo e o epítome de como D'us deseja que uma pessoa seja.

Endeusar indivíduos é proibido no Judaísmo. A idolatria é um pecado cardinal. Adoramos apenas a D'us e somente a D'us. A grandeza de um tsadic, um Rebe, um Moshê não é o poder do indivíduo, mas o poder de D'us que está trabalhando através daquela pessoa. Na verdade, não pode haver sequer o menor traço de ego inidividual ou personalidade que fique no caminho e não permita que a inerente Divindade brilhe.

E o motivo pelo qual precisamos de Moshê, e um Moshê em cada geração (Moshê transmitiu a Torá para Joshua, etc.), é porque nós como indivíduos somos consumidos e dominados pela vida material, temos nosso ego e personalidade que ficam no caminho para chegar a D'us e à verdade da Torá. Precisamos de um líder altruísta, um mestre para nos guiar e mostrar o caminho para acessarmos nossa alma e D'us. E quando Moshê nos guia ele não mostra como ele (Moshê) acessa a D'us, mas nos mostra como temos acesso direto a D'us por meio de nossas almas Divinas.

O verdadeiro líder, em outras palavras, não é um intermediário que fica no caminho entre nós e D'us; seu altruísmo e bitul permite que seja um canal transparente nos ajudando a conectar com D'us à nossa própria maneira. Um verdadeiro mestre não ensina a você a verdade dele, ensina qual é a verdade Mais Elevada e que ela pertence a você tanto quanto pertence ao mestre. O verdadeiro mestre não tem ego, ele reconhece que o tempo todo é meramente um mensageiro transmitindo verdade a partir de um lugar maior. Na verdade, o maior título de um erudito de Torá não é “chacham”, sábio, mas “talmid chacham”, o aluno de um sábio. O erudito sempre sente o bitul de que é meramente um estudante da sabedoria Divina. “Reshis chohma yiras Hashem” (o princípio e alicerce da sabedoria é reverência a D).

O argumento de Côrach era acurado no fato de que todas as pessoas são sagradas e têm acesso direto a D'us. Havia também justificativa em seu questionamento do papel da liderança, expondo seu potencial abuso e distorções. É por isso que a Torá documenta o argumento de Côrach.

Mas mesmo que seus argumentos tivessem mérito, as intenções de Côrach eram erradas. Na verdade, embora ele desafiasse a liderança de Moshê, ele exigia liderança para si mesmo (bastante reminiscente do fato de que embora o Comunismo teoricamente defenda a igualdade de todas as classes, os líderes comunistas foram os mais notórios abusadores da liderança) – motivo ainda maior para precisar de um líder realmente altruísta!

Côrach estava totalmente errado porque não entendia a verdadeira natureza de um líder – aquele que é totalmente humilde e altruísta. A liderança não trata de poder e ambição; é sobre bitul e altruísmo. E esta é a única razão para podermos confiar num verdadeiro líder, e o motivo pelo qual D'us confiou em Moshê. Quando D'us escolheu Moshê para ser o líder, Moshê resistiu fortemente. “Não sou um homem de palavras” foi um dos muitos argumentos que ele ofereceu ao recusar a liderança. D'us responde: “Quem então dá a um homem a boca para falar se não Eu.”

D'us essencialmente escolheu Moshê exatamente porque ele não queria o trabalho, e porque não falaria suas próprias palavras; ele falaria as palavras de D'us.

Esse tipo de líder era completamente novo para Côrach e seus homens. Nenhum deles jamais tinha encontrado um líder assim. Portanto eles desafiaram o próprio conceito baseado em sua experiência limitada. Mas como resultado de seu argumento ganhamos uma nova compreensão sobre a natureza de um verdadeiro líder. Este é o valor da Torá nos relatar a história de Côrach, e devemos a Côrach por permitir que o papel da verdadeira liderança fosse esclarecido para nós expondo as distorções da falsa liderança.

Essa história nos oferece uma mensagem muito relevante para os dias de hoje. Digo que muitos de nós somos simplesmente céticos sobre um verdadeiro líder – um Rebe – porque jamais conhecemos um. Os assim chamados “líderes” ao nosso redor – políticos, empresários, esportistas – são essencialmente nada mais que bons administradores, ou pessoas impulsionadas por ambição agressiva que lhes permite galgar a escada da liderança. Não estou sequer falando da corrupção avassaladora cercando os líderes, a qual todos conhecemos e somos sempre lembrados.

Eu (e muitos dos meus colegas), porém, tivemos o privilégio e a honra de conhecer um líder assim. Um homem Divino inteiramente dedicado à Causa Mais Elevada. Seu nome era Rabi Menachem Mendel Schneerson. Ou simplesmente: o Rebe – o líder.

Como um verdadeiro líder, a humildade era sua personalidade. Um homem em cuja presença você não sentia a ele, mas a si mesmo – sentia que fazia parte, que era importante e tinha uma contribuição indispensável para fazer neste mundo.

Com toda a atual discórdia num mundo que está rapidamente mudando bem na frente de nossos olhos, a falta de uma verdadeira liderança é óbvia. Com o Rebe eu aprendi como acessar minha própria alma. Aprendi como acessar a Torá – milhares de anos de história e erudição – a entender nossas vidas hoje e as forças remodelando nosso geopolítico, bem como nossas paisagens psico-espirituais.

Em Motsaê Shabat parasha Côrach, na noite de 3 de Tamuz de 5754 (12 de junho de 1994), o desafio de Côrach a Moshê se manifestou. Todos fomos desafiados a entender o papel de um Rebe-líder em nossas vidas hoje.

Nos últimos anos – e especialmente no último ano – o mundo mudou dramaticamente, com muitas mais mudanças por vir. Estamos precisando desesperadamente de verdadeira liderança – e não há dúvida de que D'us não iria nos desafiar sem nos prover com as ferramentas necessárias.

Mesmo quando Côrach questiona o papel de líder, a duradoura porção da Torá nos dá o poder de encontrar a resposta, que sim, precisamos de um líder, e sim, Moshê é o líder escolhido por D'us.

Volto para meu Rebe e seus ensinamentos – explicando os tempos nos quais vivíamos sob uma perspectiva de Torá – para fazer sentido dos eventos incômodos que nos cercam hoje. E encontro uma enorme força e clareza na visão da Torá.

Cada um de nós é desafiado hoje a responder ao argumento de Côrach. Se não quisermos ser deixados entre incontáveis perguntas num mundo cada vez mais confuso, devemos nos voltar para Moshê e seus ensinamentos em busca de esperança e direção. Precisamos descobrir o líder altruísta que pode nos ajudar a ver através da névoa.

Oh, como realmente precisamos de um líder hoje…

     
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