|
A seção
dessa semana da Torá, Metsorá, (Vayicrá capítulos
12 a 15), discute as leis de tzaraat, geralmente traduzida como “lepra”.
Tzaraat era uma doença cuja marca de identificação
era uma mancha branca (ou manchas) na pele de uma pessoa, nas paredes
de uma casa ou nas roupas. Essa mancha, além de vários sintomas
secundários, determinavam que a pessoa estava temporariamente “impura”
e exigia-se que ela se separasse do público e passasse por um intenso
processo de introspecção e cura moral. Depois que os sintomas
da doença desapareciam, começava um detalhado processo de
purificação, após o qual a pessoa era considerada
pura novamente e restaurada à sua condição sem manchas
morais.
Para essa tarefa era empregado um serviço estranho e singular.
Traziam-se duas aves. Uma era abatida e seu sangue derramado num recipiente
de barro com água da fonte; a outra ave, juntamente com um pedaço
de madeira de cedro, fio de crinolina (uma lã tingida com pigmento
feito de inseto ou caracol) e um hissopo (uma planta muito baixa) eram
mergulhados na mistura de água e sangue e salpicados sobre a pessoa
a ser purificada, sete vezes. A segunda ave era então libertada
“em campo aberto”.
Qual o significado por trás desse ritual aparentemente bizarro?
Os sabios explicam1: “Como a praga da tzaraat (lepra) vem como castigo
pela conversa maldosa e com malícia, difamando outro ser humano,
o que é um ato de tagarelice, lashon Hará, são necessárias
aves para a purificação, pois as aves ficam papagueando
continuamente com um som de tagarelice.” A questão, obviamente,
é por que o papaguear das aves simboliza a conversa incessante?
E por que uma ave era sacrificada enquanto a outra era libertada para
continuar sua vida?
Os Pássaros Falantes
Singular sobre o papaguear das aves é que muitas delas imitam a
fala humana. Pássaros falantes têm graus variados de inteligência
e capacidade de comunicação. Algumas, como o corvo, uma
ave altamente inteligente, somente são capazes de imitar algumas
poucas palavras e frases, ao passo que já foram observados periquitos
com vocabulário de mais de mil palavras.
Quando eu era criança, todo dia às 16h quando voltava da
escola, nosso papagaio esperava para me saudar. Assim que eu passava pela
porta, Skoopy – como o chamávamos – começava
a saltar dentro da gaiola e chilreava empolgado o meu nome “Yosef
Yitzchak”. Ora, Skoopy não coonseguia dizer “Yosef
Yitschak”, meu nome completo (até alguns amigos meus têm
dificuldade em me chamar pelos dois nomes), portanto ele me chamava “Tsfitzak”.
Era uma delícia voltar para casa toda tarde e ter meu nome repetido
umas 20 vezes com tanto entusiasmo!
Skoopy ficou velho, doente, e certo dia morreu. Minha mãe e eu
o enterramos no quintal da nossa casa no Brooklyn. Despedi-me do bom e
velho Skoopy, sabendo que ninguém mais me chamaria de “Tsfitzak”
novamente, nem pronunciaria meu nome vinte vezes quando eu voltasse da
escola.
Apesar dos meus cálidos sentimentos por Skoopy, como muitos papagaios,
ele podia apenas imitar fragmentos do meu nome. Até as aves que
sabem como imitar a conversa humana geralmente balbuciam apenas fragmentos
do diálogo humano.
Palavras Entrecortadas
É por isso que a Torá emprega as aves numa tentativa de
nos curar da conversa maldosa. Quando falamos mal de outras pessoas, a
conversa pode ser inteligente, aliciante e com certeza “suculenta”.
Porém, as palavras sendo faladas são entrecortadas, vindo
de seres humanos que também são quebrados. Indivíduos
engajados em conversa negativa sobre outros são como pássaros:
estão imitando a linguagem humana; podem até estar empregando
expressões sofisticadas, mas na verdade suas palavras não
são composições humanas; elas meramente imitam seres
humanos.
Pessoas notáveis falam sobre ideias; pessoas comuns falam sobre
coisas; pessoas inferiores falam sobre outras pessoas. Quando você
está conectado à sua humanidade, suas palavras carregam
um quê de majestade e dignidade. Suas palavras são sinceras,
reais, profundas, puras, vindas da humanidade dentro do seu ser. Não
é por acaso que o Targum (tradução aramaica autorizada
da Torá) traduz a frase “uma criatura viva”, descritiva
do primeiro homem, como “um espírito falante” (ruach
memalelah2). Ser humano é imitar o Divino que criou o universo
por meio de palavras. Nós também temos o poder de criar
mundos, abraçar almas e curar corações através
das palavras. Cada palavra que usamos pode ser condutora de amor e bênçãos.
Porém quando temos medo de ser humanos – genuinamente humanos
– recorremos à conversa maliciosa que difama e degrada outras
pessoas. Em nossa necessidade desesperada de nos sentir melhor a respeito
de nós mesmos, descrevemos a inferioridade dos outros. Em nossa
necessidade premente de elevar a nós mesmos, rebaixamos os outros.
A maledicência brota do tédio, ou insegurança, ou
apatia, ou negatividade interior. Todas essas qualidades indicam o espírito
alquebrado, empobrecido. Não admira que quando seguimos este tipo
de conversa um vazio incurável se instala em nossa psique. D'us
criou o mundo através de palavras e nos deu o poder de destruí-lo
através das palavras. Quando empregamos este poder, nós
mesmos nos sentimos alquebrados também.
O Talmud declara3: “Palavras más matam três pessoas:
aquela que fala, aquela de quem se fala, e a pessoa que escuta –
e a pessoa que escuta é pior do que aquela pessoa que falou.”
Transformação
A cura da lepra envolve duas aves. Uma é abatida e seu sangue derramado
num recipiente com água da fonte. Isso representa o sangue e a
destruição causados pela conversa maledicente e como ela
polui a vibração e o frescor da vida.
Ora, a segunda ave é mergulhada no sangue e então libertada
para continuar a chilrear livremente. Isso simboliza que agora devemos
aprender como sublimar nossas palavras fragmentadas e suas consequências
alquebradas. Não basta parar de falar; em vez disso, precisamos
voltar e transformar nossa linguagem fragmentada em comunicação
integral; nossas conversas medíocres em diálogo autêntico.
A segunda ave ensina que somos responsáveis não apenas pelas
nossas palavras; somos também convocados a prestar contas por todas
as palavras que poderíamos ter dito mas não dissemos. “A
palavra que você preferiu não dizer, quem sabe quão
grande ela poderia ter soado?” A segunda ave é assim mandada
embora para o campo para chilrear e espalhar a importância da gentileza
e da fala positiva.
Uma história
Um homem que não era cuidadoso com suas palavras foi a um Rabino.
Ele tinha decidido mudar e precisava de conselhos sobre como conseguir
isto. O Rabino deu-lhe uma resposta muito peculiar.
“Leve um travesseiro de penas para a rua e solte as penas em todas
as direções.”
O homem ficou perplexo, mas estava decidido a fazer o que lhe fosse aconselhado
para mudar sua vida. Após fazer conforme as instruções,
ele voltou ao Rabino.
“Agora o que devo fazer?” perguntou ele.
“Volte à rua e recolha todas as penas, até a última
delas,” foi a resposta.
Mais uma vez o homem foi para a rua e começou sua difícil
tarefa.
Por fim, ele voltou ao Rabino derrotado, relatando sua incapacidade de
seguir as últimas palavras de conselho. “Lembre-se,”
disse o Rabino, “suas palavras são como aquelas penas. Depois
que saem da sua boca, jamais retornam. Certifique-se que as palavras que
você solta sejam aquelas que você não precisa ir atrás
para recolher.”
Notas
1. Talmud Erkin 16 a, citado em Rashi sobre Vayicrá
14:4. E quanto aos outros componentes usados neste ritual? “Porque
ele exaltou a si mesmo como um cedro… deveria humilhar-se como uma
grama” (Midrash Tanchuma citado em Rashi ibid.). O fio de crinolina
também – feito de lã tingida com pigmento feito de
um inseto ou caracol – representava a mesma ideia que o hissopo,
um arbusto pequeno – a necessidade de humildade e sensibilidade
(veja Rashi ibid.).
2. Bereshit 2:8.
3. Erkin 15b.
|