índice
  O que é ser judeu?
  Por Simon Jacobson
 

Um estranho episódio é usado para explicar porque, segundo a tradição judaica, os casamentos não são programados para essa época do ano, o período do Omer entre Pêssach e Shavuot:

Nos tempos talmúdicos, 24.000 alunos de Rabi Akiva morreram durante este período "por não mostrarem respeito uns aos outros" (Talmud Yevamot 62b). Portanto honramos esse "período de luto" evitando celebrações que possam ser marcadas em outras épocas (Tur e Shulchan Aruch Orach Chaim 493:1).

Como é possível que estudantes tão notáveis, de um mestre tão especial, fossem rebaixados ao ponto de não se respeitarem entre si?! Especialmente considerando que seu professor, Rabi Akiva, ensinava que "ama a teu próximo como a ti mesmo" é um grande fundamento na Torá"!

O destino deles é igualmente, ou ainda mais, preocupante: o desrespeito é horrível. Mas por que fez com que todos eles morressem? Não é um castigo duro demais para este crime? E acima de tudo, por que nos é contada essa triste história, e nos pedem para comemorá-la abstendo-nos de casamento e outras celebrações? O passado é o passado; por que a necessidade de repisar isso?

A abertura da porção dessa semana da Torá conclui um evento também misterioso que ocorreu três capítulos antes: Depois que o Santuário foi terminado, a Torá nos conta que os dois filhos mais velhos de Aharon, Nadav e Avihu, "ofereceram um estranho fogo perante D'us, que Ele não tinha ordenado." O resultado: "Um fogo veio de D'us e os consumiu, e eles morreram perante D'us."

Ora, na porção dessa semana, seguindo as mortes de Nadav e Avihu, D'us ordenou especificamente que o exemplo deles não deveria ser repetido: "E D'us falou a Moshê, após a morte dos dois filhos de Aharon, que chegaram perto de D'us e morreram… Fala com teu irmão Aharon, para que ele [seja cuidadoso para] não entrar em tempo algum no Santo dos Santos… para que ele não morra… [mas] com isso Aharon entrará no local sagrado" (Levítico 16:1-2), e a Torá continua com as condições sobre como entrar no Santo dos Santos. Rashi explica que essa ordem vem imediatamente após a declaração da morte dos filhos de Aharon, para adverti-lo de que seu serviço a D'us não deveria ser como aquele de seus filhos.

O que está por trás das ações de Nadav e Avihu? Eles se comportaram adequadamente ou não? Por um lado, eles claramente foram grandes homens que "se aproximaram de D'us"; por outro lado, "eles morreram" porque "ofereceram um estranho fogo perante D'us, que Ele não tinha ordenado." E D'us está advertindo Aharon para não se comportar como eles.

E qual é o significado do "estranho fogo" que eles ofereceram?

Acima de tudo, se os filhos de Aharon se comportaram erradamente porque é importante documentar sua triste história, que os apresenta sob uma luz negativa? A chave dessa história está na palavra "fogo". Fogo é paixão. Toda paixão vem do fogo da alma, "a alma do homem é o fogo de D'us." Como uma chama, uma alma sempre se eleva, lambendo o ar em sua busca pela transcendência, somente para ser restrita pelo pavio trazendo a chama para a terra. O fogo da alma deseja desafiar os confins da vida; o espírito livre deseja subir ainda mais, sempre buscando atingir os céus.

Como o fogo, o espírito em chamas não pode tolerar a mediocridade e monotonia do "pavio" inanimado do materialismo. Sua paixão não conhece limites quando anseia pelo além. Mas assim como pode ser a fonte de nossa maior força, o fogo da alma, como qualquer fogo, também pode ser a causa de grande destruição.

Aqui está a história de Nadav e Avihu, duas almas extraordinárias:

Quando o Santuário Sagrado foi terminado os filhos de Aharon, indivíduos profundamente espirituais, foram atraídos para entrar no local mais sagrado da terra. Eles queriam desfrutar o êxtase do espírito puro do Templo. Na verdade, o comportamento dos dois filhos de Aharon não foi um pecado; foi um ato de grande santificação, como Moshê diz a Aharon logo após a tragédia: "Isso é o que D'us falou, dizendo: 'Eu serei santificado por aqueles que estão perto de Mim.'" Os sábios explicam: Moshê disse: "Aharon, meu irmão, eu sabia que o Santuário seria santificado por aqueles que eram amados e próximos a D'us. Quando D'us disse 'Eu serei santificado por aqueles próximos a Mim,' eu pensei que se referia a mim ou a você; agora vejo que eles - Nadav e Avihu - eram maiores que nós dois."

Rabi Chaim ibn Attar (o Ohr Chaim) explica que a morte deles foi "por um 'beijo' Divino que é sentido pelos perfeitamente justos. Somente [o problema foi que] os justos morrem quando o 'beijo' Divino se aproxima deles, ao passo que eles morreram por se aproximar dele… Embora eles sentissem a própria morte, isso não os impediu de se aproximarem [de D'us] em proximidade, deleite, companheirismo, amor, beijo e doçura, a tal ponto que suas almas se separaram deles."

A morte de Nadav e Avihu foi resultado do seu profundo anseio por uma experiência Divina. Seu erro foi que eles o iniciaram por conta própria, e "egoisticamente" permitiram que o êxtase os consumisse. Seu erro foi que eles o iniciaram por si mesmos, e egoisticamente permitiram que o êxtase os consumisse. Seu pecado não foi se aproximarem do Divino, mas que morreram ao fazê-lo. Num certo sentido, eles queriam tanto, tanto, que correram para dentro do fogo e se queimaram no processo. Seus corpos não podiam mais conter suas almas.

A Torá diz "quando eles chegaram perto de D'us e (com tamanha paixão que) eles morreram." Por que a Torá acrescenta "e eles morreram" quando já tinha dito "após a morte dos dois filhos de Aharon?" Embora seja saudável se despir de preocupações materiais, no momento em que você está no supremo êxtase da alma, deve voltar-se novamente para o trabalho que a alma deve fazer para transformar a existência física. Nadav e Avihu atingiram o êxtase mas não o retorno. Este foi seu pecado e o motivo da sua morte. Eles "se aproximaram de D'us e morreram". Eles permitiram que sua paixão espiritual superasse sua tarefa de transformar o mundo. Fugiram para além do mundo e além da própria vida.

Se sua motivação era pura, impulsionada pela paixão ardente da alma, por que então foi chamada de "um fogo estranho"?

Porque mesmo que sua intenção fosse boa, era impulsionada pelo seu desejo pessoal, talvez espiritual, mas ainda definido pelos seus anseios subjetivos. Pode ter começado por motivos Divinos, mas eles permitiram que se tornasse seu interesse pessoal, chegando a tal ponto de intensidade que os destruiu, assim tornando o "fogo" um "fogo estranho", que "Ele não tinha ordenado". Eles entraram em seus próprios termos, seu próprio passo, sua própria escolha - não em termos de D'us.

E esta foi a razão pela qual eles realmente terminaram morrendo durante o processo. Porque o mesmo D'us que os tinha imbuído com almas apaixonadas também nos ordenou usar a paixão não para expirar em êxtase e fugir do universo, não importa o quanto a opção possa parecer interessante, mas para canalizar a paixão para baixo e transformar o mundo material no qual vivemos numa morada Divina. Este é o propósito do Templo: "construa para Mim um santuário (de materiais físicos) e Eu habitarei entre vocês."

Assim, o supremo teste das intenções dos filhos de Aharon foi sua incapacidade de integrar a experiência. Se tivessem paciente e humildemente entrado em termos Divinos, teriam conseguido integrar a experiência em suas vidas e voltar a santificar seu mundo. A integração teria confirmado que eles estavam fazendo aquilo não por si mesmos mas pela causa, por D'us. O fato de terem se permitido ser consumidos com o próprio fogo espiritual, demonstrou que era sua "própria coisa", não de D'us, um fogo estranho não ordenado.

Ora, na porção dessa semana da Torá, "após a morte dos filhos de Aharon", Aharon é advertido a não entrar no Santo dos Santos como seus filhos fizeram. Mas, "com isso Aharon deverá entrar no local sagrado" - em reverência, obediência e auto-abnegação. E dessa maneira ele poderia "Fazer expiação para si mesmo e pela sua casa" no dia mais sagrado do ano, Yom Kipur, e recitar uma prece pelo sustento de Israel - atos de preocupação pelo mundo.

Em outras palavras, o fator determinante sobre se o fogo da alma será uma força construtiva ou destrutiva depende da motivação da pessoa, como ela começa sua jornada espiritual: se é uma experiência auto-indulgente, por desejo e interesse pessoais, então você não desejará sair de seu êxtase particular para as necessidades do mundo, e o fogo inevitavelmente consumirá você. Se, porém, é movido pela dedicação altruísta e se render ao Divino, então dentro desse êxtase, o desejo de retornar e santificar o mundo estará sempre implícito, e o fogo elevará você e seu mundo a alturas exaltadas.

Na famosa história talmúdica dos "quatro que entraram no jardim" (uma experiência mística) somente Rabi Akiva começou a jornada com a atitude correta: ele "entrou em paz e (portanto) saiu em paz." Como ele entrou com humildade, em obediência à vontade Divina e procurando unir o mundo mais elevado com o mais baixo, por isso ele saiu em paz. Sua intenção de voltar estava implícita no resultado de seu caminho ao êxtase religioso. Enquanto os outros três - Ben Azzai, Ben Zoma e Acher - todos entraram por outros motivos, o que determinou como eles saíram. Ben Azzai entrou procurando o êxtase, não o retorno; portanto ele "olhou e morreu". Ben Zoma "olhou e ficou abalado" (com loucura). Acher "mutilou as plantas" (i.e., tornou-se um apóstata).

De maneira semelhante os 24.000 alunos de Rabi Akiva "queimaram" uns aos outros com sua grande paixão. Seu desrespeito mútuo não foi apesar de, mas por causa de sua grandeza. Cada aluno estava tão consumido com sua própria opinião brilhante que não podia tolerar a posição do colega. Pessoas que não são tão poderosas e intensas em suas posições podem achar mais fácil comprometer-se e coexistir com outros. Mas alunos excepcionais que são apaixonados sobre suas interpretações e opiniões em Torá - ele exigem muito mais humildade, cuidado e sensibilidade para garantir que não vai "destruir" o outro com sua intensidade. E quanto "mais sagrado" o fogo, mais ele sente que está representando Torá e D'us - maior é o perigo.

Como o Rebe Kotzker ironicamente interpreta em Mishnê: "Toda discussão que é pelo bem do céu vai durar para sempre." Quando ambas as partes sabem que seu desacordo é movido por auto-interesse, então há esperança de que eles chegarão a algum acordo. Mas quando cada parte pensa que está representando o céu, vestindo suas diferenças de opinião em "vestes sagradas", então não há esperança de reconciliação, com cada lado sentindo que não pode "comprometer a "D'us"...

Se esses alunos tivessem sido de menor importância, seu desrespeito mútuo não os teria prejudicado tanto. Mas exatamente porque suas mentes estavam em fogo e seus corações em chamas, eles se queimaram uns aos outros.

Ouvimos a história dos filhos de Aharon - e dos alunos de Rabi Akiva - para nos ensinar uma lição valiosa sobre nossas próprias experiências na vida, e os perigos da paixão, zelo e integridade: cada um de nós tem uma alma poderosa, com fogo interno. Cada um de nós irá, a certa altura, encontrar oportunidades espirituais; momentos apaixonados que atrairão e acenderão nosso fogo, querendo transcendência - a necessidade de ir além da vida diária. A transcendência pode tomar muitas formas: espiritualidade, música, romance, viagem, ou sexualidade, entre outras.

Como você age nessas horas - quando as chamas da sua alma estão acesas - vai definir o destino de sua vida.

Isso explica por que a porção dessa semana é conhecida pelo nome "depois" ou "depois da morte". Por que dar à porção da Torá um nome estranho - "depois da morte?" Por que enfatizar a morte trágica deles? A Torá está nos dizendo que a "morte" dos dois filhos de Aharon - a própria morte, e "depois da morte" - nos ensina uma lição vital, na verdade uma lição dupla:

1 - A busca e a necessidade de transcendência, o anseio por uma altura espiritual é um ingrediente saudável e necessário na jornada humana. Todas as grandes conquistas do homem, seus atos mais nobres, seus amores mais profundos - vêm do fogo apaixonado da alma.

2 - Porém, como ocorre com todas as coisas poderosas, deve-se tomar cuidado para que a experiência espiritual não "queime você", mas seja integrada em sua vida.

O fogo das nossas almas, como qualquer fogo, pode ser a fonte de sustento (fogo saudável), ou… um inferno ("fogo estranho"). O desafio é grande. A escolha é nossa. Aqui está a dupla lição positiva dos filhos de Aharon, ambas pela sua morte e "depois da morte".

Sua morte nos ensina como não entrar no Santo dos Santos sem ser convidado, não entrar por iniciativa própria, na hora que quisermos, não entrar como resultado de nosso desejo pessoal; "após a morte" nos ensina como entrar - "com isso Aharon entrará no local sagrado" - com a maior humildade, sensibilidade e, acima de tudo, imergindo e sublimando-se totalmente dentro da experiência.

O mesmo é verdadeiro quando temos uma opinião forte sobre uma determinada maneira. Quanto mais esperto você é, mais poderosa a sua resolução, mais convencido você está da certeza de sua posição, maior o cuidado que precisa ser tomado para não magoar outros no processo. Este pode ser o maior segredo para um relacionamento saudável ou para o casamento: sua capacidade de transcender sua posição poderosa e certeza.

Os 24.000 alunos foram destruídos nesse período de tempo por causa da sua incapacidade de coexistir. Sua paixão ardente e seus dons foram seus erros. Redimimos suas mortes durante esses 49 dias olhando dentro dos nossos corações apaixonados, e aprendendo a arte da restrição: a suprema grandeza é medida não por quão grande você é e por quão grande é a sua luz, mas por como você permitiu que aquela grandeza fosse contida e integrada na vida de outras pessoas.

     
top