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  Um Salto Calculado de Fé
 
Por Mendel Kalmenson
  “Decidi não jogar videogame pelos próximos cinco anos,” disse baixinho meu irmão de treze anos.

A agradável conversa à nossa mesa do Shabat teve uma parada abrupta. Estávamos todos de volta das férias de verão, sentados ao redor da mesa e partilhando nossas experiências e os pontos altos dos últimos meses.

Aparentemente nenhuma novidade era tão chocante quanto a dele.

“Você fez o quê?” todos perguntamos, numa variedade de palavras e decibéis. Ele recebeu nossa atenção total quando começou a explicar: “Estávamos num farbrenguen (reunião chassídica focada em auto-aperfeiçoamento), e o palestrante discorreu, entre outras coisas, sobre a importância de passar o tempo de maneira sábia. Alguns de nós ficamos tão inspirados que decidimos, ali mesmo, para empolgação dos presentes, deixar de jogar videogames.”

“Nada de jogos para você até completar dezoito anos,” disse alguém. “Ah, isso é nada comparado a alguns dos outros,” respondeu ele. “Um amigo disse que vai parar por dez anos, e outro prometeu parar para sempre!”

“Isso é ridículo,” disse um realista, “e de maneira alguma factível. Ele deveria ter escolhido um tempo menor se estava falando sério a respeito disso.”

“Discordo,” disse um idealista. “Acho que é bonito um garoto daquela idade ser suficientemente maduro para tomar uma decisão a longo prazo como essa.”

O pragmatista: “Acho que não é a longo prazo.”

Assim teve início uma discussão que continuou noite adentro.

As rodas do êxodo tinham começado a girar: o doce perfume da liberdade estava no ar. Porém, os israelitas ainda não estavam prontos. Eles careciam de méritos e ainda estavam cobertos pela sujeira pecaminosa. Precisando desesperadamente de purificação, eles foram ordenados por D'us:

“No dia dez deste mês, cada homem deve pegar um cordeiro… Devem vigiá-lo até o dia catorze do mês [quando] toda a congregação da comunidade de Israel irá abatê-lo à tarde. Devem pegar o sangue e colocá-lo nos portais e batentes de suas casas.”1

O que o abate de um cordeiro e a exibição do seu sangue têm a ver com purificação espiritual?

Rompendo um Vício
Na época da nossa história a maioria dos israelitas frequentava muitos templos espalhados por todo o Egito – venerando uma profusão de deuses, todos exceto o deles. Pesquisadores espirituais por natureza, os judeus tinham se tornado profundamente apegados aos seus ídolos. Enfatuados com o paganismo, eles terminaram por se tornar viciados.

Por motivos quase inimagináveis, no topo da cadeia de idolatria ficava o cordeiro. No Egito antigo, o cordeiro era servido pelas pessoas, em vez de (o cordeiro não permita) servir às pessoas…2

Tão grande era a veneração a esses animais que causar-lhes dano era punido com a morte, como é mostrado pelo argumento3 de Moshê quando ele tentou negociar com o faraó um feriado para seu povo. Em resposta às palavras do faraó: “Vai e sacrifica para teu D'us nesta terra,” Moshê respondeu: “Não seria correto fazê-lo, pois é a deidade do Egito que eu sacrificaria ao nosso D'us…”

Deixando de lado a etiqueta social, seria suicídio – “… se sacrificássemos a deidade do Egito perante os olhos deles, não seríamos apedrejados?”

O raciocínio por trás da ordem Divina de abater um cordeiro e colocar seu sangue para todos verem agora se torna bastante claro. Pois não é passando para o outro extremo e se livrando daquilo que antes não podia ficar sem, a melhor cura para um vício? Poderia haver maneira melhor de renunciar e denunciar sua antiga obsessão com cordeiros matando um publicamente?

Ao espalhar seu sangue, a fonte de sua vitalidade, sobre as portas, eles estavam dizendo: “Os ídolos que antes pensávamos ser fonte da vida na verdade não têm vida!”

Além disso, sua sinceridade e fidelidade para com o D'us de seus pais estavam sendo provadas pela sua disposição em se arriscar para cumprir Sua vontade. Somente arriscando a vida para cumprir Sua ordem, eles poderiam realmente se purificar.

Foi esse sangue que adornou suas portas que mais tarde os distinguiu dos vizinhos egípcios na época da praga do recém-nascido e lhes garantiu a imunidade que tiveram.

Uma questão ainda permanece:

Os israelitas foram ordenados a preparar a ovelha e abatê-la quatro dias depois, no dia catorze. Por que o intervalo de quatro dias? O mais preocupante: por que prolongar o risco para as vidas dos judeus?

Mas este é exatamente o ponto. Pois se o processo era instantâneo, seus efeitos não durariam mais tempo. Se eles tivessem de sacrificar a si próprios ainda enquanto “sob a influência” da impressionante exibição da força de D'us, eles acordariam de ressaca” e com dor.

Jamais devemos confundir inspiração com transformação. A primeira vem facilmente, a segunda não. Como diz o ditado: “Tudo que vem fácil, vai fácil.”

Então, era no melhor interesse dos judeus, o que é importante para D'us, que eles tivessem tempo extra para refletir sobre as coisas.4

Esse tempo lhes permitiu olhar para a ovelha atada às suas camas com olhos sóbrios. Apenas imagine: pela manhã, quando eles acordavam e à noite antes de se deitar, e provavelmente muitas vezes nesse intervalo, eles eram forçados a olhar para sua ex-deidade – e então olhar para si mesmos nos olhos e perguntar se estavam ou não prontos para fazer a grande transição que tinham planejado.

Que montanha russa emocional eles devem ter passado – forçados num aposento com seu passado escuro mas tentador, tornado pior pelo banimento de seu deus antigo.

Porém, isso facilitou o verdadeiro encerramento.

O Que Há Nisso Para Mim?

Sem planejamento não há plano.

Quando você se avalia contra as suas resoluções, não está limitando seu crescimento e contribuições – está aumentando-as. Até o ouro pode ser pesado demais para carregar se não for cortado em pedaços.

O salto de fé é muito importante, mas não sem um local de pouso; a diferença entre skydiving e suicídio é um paraquedas. Isso não é sobre diminuir o salto; é sobre sublinhar o antes e o depois. A inspiração, quando interiorizada e aperfeiçoada, torna-se a base da transformação.5



NOTAS

1. Shemot 12:3-7
2. Isso explica a lógica de Yossef quando estava preparando seus irmãos para o primeiro encontro deles com o faraó (Bereshit 46:34): “Quando o faraó lhes perguntar qual é sua ocupação, digam que até agora foram pastores, para que ele mande vocês para a terra de Goshen [não em propriedade egípcia]. porque todo pastor é uma abominação no Egito.” “Porque as ovelhas são uma deidade para os egípcios” – Rashi ad loc.
3. Shemot 8:22. Veja também Rashi ad loc.
4. Um exemplo anterior desta ideia é encontrado na história da Amarração de Yitschac. Somente no terceiro dia da jornada de Avraham D'us revelou a ele a montanha sobre a qual Yitschac seria sacrificado. Rashi pergunta: “Por que D'us não a mostrou imediatamente? Porque assim não seria dito: D'us assustou e confundiu Avraham inesperadamente, e confundiu sua mente; mas se Avraham tivesse tido tempo de ponderar sobre o assunto, ele não o teria feito.” É interessante, também, “o tempo de espera” foi de três dias. Embora eu não tenha visto isso na palestra do Rebe, a importância do número três parece óbvia baseada no princípio talmúdico de que quando algo é feito três vezes se torna um hábito, ou, para usar o termo talmúdico, chazaká.
5. Baseado nos ensinamentos do Rebe, Licutê Sichot vol. 16, pág. 114 ff.
     
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