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  Além de Nossa Compreensão
 
Por Eli Touger
 

O termo Chukim se refere àquelas mitzvot cujo fundamento lógico não pode ser compreendido pelo intelecto humano. Dentro desta categoria, entretanto, as leis da Vaca Vermelha se destacam como especiais. Assim, o Midrash1 cita o Rei Salomão (sobre quem está escrito2: “E Shlomo foi mais sábio que todo homem na face da terra”): Eu fui capaz de compreender todas as [outras passagens difíceis da Torá], mas, em relação à passagem da Vaca Vermelha, eu perguntei e eu procurei; “Eu disse: ‘Eu me tornarei sábio’, mas eu [vi] que isto estava distante de mim”.3

De fato, foi somente em relação a Moisés que o Midrash4 afirma: “O Santo, bendito seja Ele, disse a Moisés: ‘Para ti [somente] eu revelarei a lógica da Vaca Vermelha’”.

Por um lado, essas citações indicam que as leis da Vaca Vermelha não transcendem inteiramente os domínios do intelecto, pois a Moisés foi concedido um entendimento de sua lógica. Todavia, a explicação obviamente transcende o conhecimento comum e, assim, não podia ter sido percebido por Shlomo, nem Moisés a comunicou aos outros5. De fato, mesmo a apreciação de Moisés não veio como um resultado de seus próprios poderes de compreensão. Como o Midrash afirma6: “É um chukat, um decreto que Eu ordenei. Nenhum ser criado é capaz de compreender Meus decretos”.

Por que Moisés foi capaz de captar essa lógica? Porque a ele foi concedido um dom especial de D'us. D'us é onipotentemente capaz de fundir transcendência com limitação e foi por virtude dessa onipotência que Moisés foi capaz de apreciar a explicação.

Tocar a Essência da Torá

Surge a questão: Por que a resposta foi dada somente a Moisés? Se apreciar a lógica da Vaca Vermelha pudesse nos ajudar em nosso serviço Divino, por D'us ou Moisés não a compartilharam com os outros?

A resposta depende de observarmos a natureza da Torá. A Torá é uma com D'us 7, uma expressão de Sua vontade essencial. Portanto, assim como Sua vontade está acima da compreensão intelectual, também está a Torá. Entretanto, D'us deu a Torá aos mortais, não porque Ele deseja sua obediência, mas porque Ele está preocupado com o seu bem-estar. Ele quer que o homem desenvolva uma conexão com Ele e, para que aquela conexão seja internalizada na compreensão do homem, então a sabedoria Divina se torna parte de sua composição. E, com esta intenção, Ele revestiu a Torá com uma estrutura intelectual.

Esta dimensão intelectual é, entretanto, meramente uma extensão da Torá. A essência da Torá permanece Divindade transcendental e não pode ser contida dentro de quaisquer limites, mesmo os limites do intelecto. Para se relacionar a esta essência, o homem deve se aproximar da Torá com um compromisso que transcende a sabedoria ou a lógica.

Para enfatizar esta dimensão, foi necessário que pelo menos uma parte da Torá permanecesse inteiramente acima da compreensão intelectual. Esta é a passagem que descreve as leis da Vaca Vermelha. Essas leis, que transcendem nosso entendimento, nos ajudam a entender que toda a Torá, em sua essência, também está além de nossa compreensão. Isto, por sua vez, aumenta nossa sensibilidade ao seu núcleo interior Divino.

Tivesse sido toda a Torá revestida pela razão, o homem seria motivado a confiar em seu próprio entendimento e teria dificuldade em se elevar a um desafio que requer mesirus nefesh, auto-sacrifício. De fato, limitar nosso comprometimento espiritual à esfera intelectual, encorajaria a inclinação natural e material do homem. Haveria uma tendência de seguirmos nossos desejos e de racionalizarmos nossa conduta, mesmo quando eles estivessem faltando8. Sem assumir um compromisso ilimitado com a Torá, o homem não seria capaz de se relacionar à sua ilimitada verdade.

As leis da Vaca Vermelha, entretanto, nos enchem com uma consciência da natureza ilimitada da Torá, incentivando-nos a nos devotarmos inteiramente à Torá, tanto à sua observância, quando ao seu estudo9. Tornar-se consciente da natureza Divina interior da Torá desperta a natureza Divina interior de nossas almas, permitindo-nos desenvolver uma ligação mais completa com Ele.

Para ressaltar a especial contribuição representada pelas leis da Vaca Vermelha, a Torá se refere a elas como chukas haTorah (“o decreto da Torá”) 10, em vez de chukas haporah (“o decreto da Vaca [Vermelha]”)11. O uso da primeira expressão enfatiza que nossa conexão com toda a Torá depende de um comprometimento que transcende o intelecto.

Um Ego Abnegado

Esta resposta, entretanto, leva a uma outra questão. Se considerar as leis da Vaca Vermelha como um chok é essencial à nossa abordagem da Torá, por quê D'us revelou sua lógica a Moisés? De acordo com o raciocínio acima, isto diminuiria o comprometimento do Moisés.

Para resolver este enigma, nós devemos concluir que a explicação para chok não foi dada de uma forma que pudesse ser alcançada pelo intelecto de Moisés. Em vez disto, a vontade essencial de D'us foi revelada dentro do pensamento de Moisés. Aquilo que não pode ser entendido se torna, assim, a pedra fundamental de seus poderes intelectuais.

Explicando: Moisés representava a personificação de chochmá, geralmente traduzida como “sabedoria”. Mas, existe uma diferença entre chochmá e nosso conceito comum de sabedoria.

Toda conceitualização é composta de dois elementos: a) a própria ideia, e b) o processo de abrirmos a nós mesmos para aquela ideia, progredindo para além da nossa forma prévia de pensamento. chochmá está relacionada ao segundo elemento e, assim, é identificada com bittul, existência abnegada12. Este bittul faz da chochmá um recipiente apropriado para o Ein Sof, o infinito de D'us13. E este processo espiritual de fazer o Ein Sof repousar dentro da chochmá é o que aconteceu quando D'us tornou conhecido por Moisés o raciocínio para as leis da Vaca Vermelha.

Por este motivo, conhecer o raciocínio não afastou do comprometimento de Moisés. Diferentemente de outros mortais, Moisés não tinha uma auto-imagem separada, individual; ele viu a si mesmo somente como um meio de expressão da Verdade de D'us. Mesirus nefesh foi a essência de sua natureza e, por isso, nunca podia ser diminuída.

Na Era da Redenção, o Mashiach oferecerá a décima Vaca Vermelha, purificando primeiro os sacerdotes e, através deles, toda nação14. E, então, nós prosseguiremos em nosso serviço Divino para a época quando a purificação do contato com os mortos, possibilitada pela cerimônia da Vaca Vermelha, não mais será necessária. Pois “Ele engolirá a morte por toda a eternidade” e a Divindade, a fonte de toda a vida, será abertamente revelada durante toda a existência.


NOTAS

1. I Reis 5:11.
2. Eclesíastes 7:23.
3. Loc. cit.:6; Midrash Tanchuma, seção. 8.
4. Além disso, nós encontramos que pilpulei d’oraisa, o processo do raciocínio didático pelo qual a Lei Oral é explicada, também foi dada a Moisés como um presente de D'us. Neste caso, entretanto, Moisés ensinou este método a todo o Povo Judeu (Nedarim 38a). O fato de que ele não ensinou A lógica da Vaca Vermelha indica, assim, que ele não era não era capaz, já que isto representa um nível intelectual inacessível aos outros.
5. Koheles Rabbah 8:1 (5).
6. Zohar I, p. 24a; Tanya, cap. 4
7. Ver o comentário do Rambam (Shemot 19:2) que fala sobre a possibilidade de ser “um degenerado com uma licença da Torá”.
8. Ver o ensaio anterior, intitulado “Real Growth”, que explica como a apreciação de Bechukosai da dimensão de chukim na Torá nos inspira a “nos ocuparmos do estudo da Torá”, para aplicarmos a nós mesmos de forma árdua, além dos nossos limites comuns.
9. Bamidbar 19:2.
10. Em referência às leis do sacrifício de Pessach, por exemplo, está escrito (Shemot 12:43): “Esta é chukas haPesach (o decreto do sacrifício de Pessach)”.
11. Ver Tanya, cap. 3.
12. Tanya, cap. 35.
13. Rambam, Mishneh Torah, Hilchos Parah, conclusão do cap. 3..
14. Yeshayahu 25:8.

     
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